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Mercado Adolpho Lisboa

Matheus Seráfico


Meu olhar de peixe morto

não recreia pescador

Meu pé-quente na fisgada

é pé-frio no meu amor


O tambaqui, quando ‘garra,

dá cangapés de traíra

E quando a vara embodoca,

ela jamais se desvira


Meu olhar de peixe morto

não recreia pescador

Lá pros tempos de eu menino,

igarapé sem fedor


Tucunaré que encharuta

dá c’oas bocas no caniço

E quando a lua dá tchibum

é que a esperança deu nisso


Meu olhar de peixe morto

não recreia pescador

Palafita, se balança,

é que a cheia vem repor!


Pirarucu quando dá c'o olho

nas bananas sobre a canoa

Ou a pesca acaba em boquera

ou abastece o Adolpho Lisboa


Meu olhar de peixe morto

não recreia pescador,

Ai, cunhantã, minha mais nova,

foi Solimões quem a levou!

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*À moda de Caymmi, o poeta escreveu letra que ainda pretende musicar.

 
 
 

Todos nós conhecemos na infância o ronco amortecido de um trovão distante. Algumas vezes, mas nem sempre, precedido de raio de luz a ferir as nuvens negras da noite. Quanto mais criança, mais medo temos de uma presença impalpável do desconhecido, do anúncio estapafúrdio de que algo muito mau se arquiteta em cavernas profundas e talvez povoada dos mais repelentes vermes e morcegos. A infância é aterrorizante.

Minha geração, nascida nos anos 40 do século passado, só teve a luz do relâmpago e o estrondo do trovão como fonte de temor. Nossos irmãos de geração na Europa, na Ásia, em partes da África e sobretudo na Rússia, onde morreram mais de 20 milhões de pessoas, certamente conheceram o medo mais trágico de luzes de explosões e roncos de canhões.

Hoje, tanto no Brasil quanto em quase todas as áreas habitadas deste planeta, nem crianças nem adultos dormem em paz. Num retorno cada vez mais crescente do totalitarismo que havíamos derrotado na Segunda Guerra Mundial, renasce nos Estados Unidos da América, líder de nossa infância e orgulho de nossa juventude, a metástase do câncer que pensávamos haver extirpado, o cadavérico aceno de mortos-vivos a nos saudar.

Um presidente desde sempre, é justo lembrar, assinalado pela Sociedade Psiquiátrica de seu país como incapaz de exercer as funções presidenciais por excesso de narcisismo patológico, revela-se agora sem sombra de dúvida o medo maior de crianças e adultos pela onipotência doentia que se desdobra a cada dia como ondas sucessivas de insânia em nossas praias.

Atraído sempre pelos holofotes da publicidade gratuita de uma imprensa acrítica e condescendente, Sua Excelência se esparrama no leito do poder como o bebê chorão a sempre buscar o seio farto da mãe- pátria, para logo depois , numa clivagem kleiniana, tentar arrancá-lo numa fúria esquizoide.

Autocandidato ao prêmio Nobel da Paz, retira das gavetas cavernosas a possibilidade de retomada de ensaios nucleares de novas armas de destruição em massa. Que mente seria tão demente a não perceber a incongruência das duas aspirações?

Homem sequer capaz de perceber, nos encontros com mais espertos e sagazes chefes de Estado que o recebem com as pompas de estilo, nos nosocômios universais, a ironia com que lhe deixam sair como vencedor de pirras batalhas inventadas por sua fantasia de Rei do Universo, espada na cinta e sinete na mão.

E neste bailado à beira do precipício, sua corte de lambe-botas, a cada minuto, o estimula a um show diário de desrespeito a leis, tratados e convenções que são rasgados como se fossem lixo da história, e os vemos substituídos por mandamentos divinos, assim determinados por fundamentalistas a proceder de forma e jeito de adversários igualmente fundamentalistas dispostos a fazer da Terra o planeta dos Deuses Decadentes.

Nada mais próximo de Mussolini. Nada mais similar ao espaço vital de Hitler.

Hoje, na nova concepção geopolítica da sacrossanta primazia do hegemônico, a servidão humana universal é o preço da nova Paz.

E desta forma, diária e sistematicamente, a tríade tão conhecida do Deus-Pátria-Família serve de certidão de boa-fé para o renascimento da violência governamental como forma de diálogo social. E não mais que de repente, nossas ruas e avenidas se tornam, mais uma vez, os cenários de morticínios entre irmãos. O envio de forças paramilitares aos Estados governados por Democratas nos Estados Unidos é absolutamente eloquente. A possível vitória de um articulado oposicionista islamico como prefeito de Nova York, já agora nos próximos dias, merece acompanhamento diário. No fundo, só em Nova Yorque se poderia imaginar este embate entre um islamista e Trump.

Enquanto isto, em Belém do Pará, reúnem-se os que acreditam na sanidade. A começar pelo governo do Brasil, a que não posso deixar de render minhas homenagens e meus agradecimentos pelo equilíbrio e serenidade que vem demonstrando nos jardins do sanatório geral.

Taí uma coisa que não se pode esquecer. O Brasil está dialogando com uma paciência franciscana. Inclusive com os perdidos no parque do próprio Brasil que continuam a convocar fantasmas do passado na esperança de nos levar a todos na mais absurda vigarice jamais acontecida entre nós. E neste momento, mais uma vez, a mensagem dos perdidos no parque é a violência armada como forma de bandeira nacional.

Mas algo me diz que desta vez, diante de tanta insanidade, nós somos dos poucos que ainda conhecemos o caminho de casa. Vai dar trabalho, mas a casa, modesta, é nossa.

ADHEMAR BAHADIAN

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*Jornal do Brasil, 02/11/2025

 
 
 

Washington Melo Neto*


EM SE TRATANDO de planejamento sucessório a tônica que move a intenção de quem planeja quase sempre será evitar o conflito, o litígio, as disputas entre os destinatários/herdeiros quanto ao patrimônio construído que precisa ser distribuído, afinal de contas, a morte é certa para todos: se trata de fato da natureza, da vida. A transmissão vai ocorrer e, se nada for feito, vai seguir o que a lei determina, que inclusive pode não ser a melhor das soluções já que cada família tem suas peculiaridades... nem sempre a distribuição prevista em Lei, "padronizada" e "genérica" será a mais justa para todos os casos mas terá que ser aplicada SALVO SE O INTERESSADO, a tempo, planeje a transmissão/distribuição dos bens. Para planejar a distribuição do patrimônio diversas ferramentas estão disponíveis conforme a legislação autoriza e tão importante quanto conhecer cada uma delas é saber que a COMBINAÇÃO de várias delas pode ser um caminho mais inteligente na medida em que cada uma delas têm pontos forte e pontos fracos, vantagens e desvantagens; saber moldar esse "COMBO" para cada tipo de situação familiar é o verdadeiro desafio. Somamos a tudo isso as vantagens de subtrair custos evitáveis e tentar evitar (mas nunca garantir!) conflitos entre os herdeiros e inclusive um inventário e suas despesas. A chamada "partilha em vida" hoje tem base legal no artigo 2.018 do Código Reale (2002), outrora tendo lugar no artigo 1.776 do revogado Código de Beviláqua (1916). A redação atual assim reza: "Art. 2.018. É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários". O dispositivo é claro ao apontar a DOAÇÃO e o TESTAMENTO como instrumentos dessa forma de partilhar bens que cabe ao ASCENDENTE titular dos bens e também ressalva que não pode haver prejuízo à legítima que pertence aos necessários. Como sabemos a legítima equivale a 50% da HERANÇA deixada pelo titular (art. 1.846 do CC) e herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge/companheiro (art. 1.845). A respeito desse peculiar instituto já discorria em 1994 o ilustre jurista ARNALDO MARMITT (Doação. 1994) asseverando sob a égide do CC/1916 o seguinte: "Não se identifica 'in totum' este negócio nem com a DOAÇÃO, nem com a PARTILHA, inobstante ter elementos de ambos os institutos. É ato 'sui generis' que, como DOAÇÃO, realiza-se 'inter vivos', e como PARTILHA segue as normas técnicas desta". (...) A partilha em vida abrange TODOS OS HERDEIROS NECESSÁRIOS e pode alcançar também a COTA DISPONÍVEL. É partilha definitiva. Não é adiantamento de legítima, por atingir TODOS O PATRIMÔNIO a partilhar. Por ser exaustiva, não haverá espaço para INVENTÁRIO ou outro tipo de distribuição. Qualquer indagação sobre lesão a direitos ou preterição, em ação própria deve ser discutida, como a de anulação, nulidade, ou outras". Estamos com aqueles que interpretam o dispositivo destacando que em sede de PARTILHA EM VIDA todo o patrimônio deve ser tratado e distribuído, não havendo se falar em resolver apenas o que for da cota disponível, relegando a legítima. Avançando nessa linha, se mostra óbvio que todos os" sucessíveis "imediatos devem participar da distribuição (principalmente os herdeiros necessários) o que torna imprescindível, por óbvio, a concordância na distribuição, já que a ideia - repita-se - é evitar conflitos, gastos com inventário e ter maior controle sobre a distribuição dos bens que compõe o acervo, antecipando a distribuição. Mesmo havendo distribuição de todo o acervo entre os herdeiros não se pode deixar de recordar, como aponta com muita acuidade o ilustre professor CONRADO PAULINO DA ROSA (Planejamento Sucessório. 2022) a necessidade da reserva de recursos suficientes para sobrevivência do doador: "Considerada por muitos como uma exceção aos pactos sucessórios, a PARTILHA EM VIDA pressupõe a doação de todo o patrimônio pelo disponente, devendo, no entanto, reservar recursos suficientes para sua subsistência, o que pode ser realizado por meio de RESERVA DE USUFRUTO, por exemplo. Isso porque, se assim não fosse, ficaria caracterizada a doação universal, o que é prática vedada pelo nosso ordenamento jurídico (art. 548, CC)". POR FIM, resta apontar que como ocorre na maioria das vezes, por envolver imóveis a PARTILHA EM VIDA deve ser feita por ESCRITURA PÚBLICA seguindo o devido REGISTRO em prestígio ao art. 1.245 do CC, sendo certo que embora a assistência de ADVOGADO não seja obrigatória para esse tipo de ato especificamente, se mostra altamente recomendada já que como se percebe, se trata de PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO onde é nítida a intenção preventiva de se evitar futuros litígios, anulações etc - o que sem sombra de dúvida exige a assistência de um Advogado Especialista, atento às peculiaridades de caso concreto: "TJMG. 10024141029041001. J. em: 30/05/2017. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OPOSIÇÃO À AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ESCRITURA. DOAÇÃO DE ÚNICO IMÓVEL PARA UM DOS QUATRO FILHOS DO CASAL, COM EXPRESSA ANUÊNCIA DOS DEMAIS E RESERVA DE USUFRUTO E SEM CLÁUSULA DE REVERSÃO. Negócio Jurídico válido como PARTILHA EM VIDA, inclusive tendo sido formalmente dispensada a colação. VIOLAÇÃO AO ART. 549 DO CCB, POR AUSÊNCIA DE PROTEÇÃO À LEGÍTIMA. Inocorrência. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. Boa-fé objetiva. VALIDADE DO ATO. Anulação. IMPOSSIBILIDADE. REFORMA DA SENTENÇA. I- Embora, em regra, seja nula a doação de imóvel de ascendente para descendente, sem proteção da legítima dos demais futuros herdeiros do doador, a teor do art. 549 do CCB, é válido o NEGÓCIO JURÍDICO SUI GENERIS objeto da lide, consubstanciado em real partilha em vida do único bem, com anuência de todos os interessados, reserva de usufruto e dispensa expressa de colação, devendo ser entendido como válido, ainda mais se não provado vício de vontade, sob pena de violação ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 113 do CCB. II- Recurso conhecido e provido.

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*O autor é advogado e Consultor Jurídico no Âmbito da Regularização Imobiliária.

Especialista em Direito Civil, Direito Registral Imobiliário e Planejamento Sucessório.

 
 
 
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