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Repentinamente, vêm-me à memória fatos e cenas de minha infância. Os ladrões (de galinha dizia-se), preferiam os quintais, temerosos do flagrante a que o arrombamento de portas e janelas os exporia. Escondidos atrás de alguma árvore de caule denso, ou agachados sob a proteção de algum tufo de mato, burlavam a vigilância. À luz do sol, seria difícil fugir à perseguição de um guarda civil. Metido em seu uniforme cáqui, a cabeça coberta por um chapéu hoje usado apenas em cerimônias militares, o vigilante público logo descobriria o larápio (quem ainda se lembra desse termo?). Se era noite, os vigilantes eram chamados guardas noturnos. Para melhor protegerem os que tomavam seus serviços, comunicavam-se com os colegas, por sopros em bem afinados apitos. Alguns dos protegidos dormiam menos, acordados na alta madrugada pelo apito protetor. Melhor isso, que ser furtado ou roubado. É daquele tempo que lembrei, ao iniciar esta crônica. No meio da manhã, as folhas de um grupo de bananeiras quase no fundo de nosso quintal agitavam-se anormalmente. Não foi difícil enxergar uma pessoa, escondida entre o folharal. O medo exigia pedir socorro. Quem o deu foi o irmão mais novo de minha mãe. Ele se dirigia à casa da namorada, poucas centenas de metros adiante da nossa. Aluno do CPOR/Belém-PA, não havia quem melhor pudesse prestar aquele tipo de socorro. O invasor foi levado a um estabelecimento policial. Nada o infeliz ladrão levou. Nem mesmo um objeto pessoal de baixo valor. Como o par de sapatos novos ainda não estreado, que perdi anos mais tarde. Um colega do homem preso pelo meu tio e depois compadre, levou-o consigo. Hoje, jóias atraem mais que um pisante virgem. Armas dispensam o esconderijo nos quintais. Nem sei por que me lembrei desses fatos...

 
 
 

O engenheiro especializado em macroeconomia Samuel Hanan, ex-vice-governador do Amazonas, traz sugestivos comentários sobre o que se deve cobrar do Congresso Nacional, em 2024. O conhecido profissional aproveita a passagem iminente do ano para mais uma vez analisar alguns dos vícios que marcam nossa política e, em texto intitulado Tarefas para o Congresso em 2024 (publicado no Estadão) submete ao escrutínio dos interessados dez pontos merecedores da atenção – dos leitores, de todos os interessados nas políticas de Estado e, em especial, dos que têm dentre seus deveres o acompanhamento e fiscalização das atividades do Poder Executivo, além da produção do ordenamento jurídico que rege as relações sociais em território nacional. O mínimo que se tem a fazer, além da leitura do oportuno e interessante texto, é refletir sobre as propostas apresentadas por Hanan. Quem sabe, fazendo-o, o leitor acabará por se sentir atraído a também contribuir para o encontro de propostas que fujam ao trivial que tanto mal tem feito à sociedade. Sendo esta, como todos deveríamos saber, não mais nem menos que um produto resultante da própria vontade dos que a constituem.

O primeiro item das sugestões do analista é a extinção do instituto da reeleição para os postos do Poder Executivo. Presidente da República, governadores de Estado e Prefeitos municipais não deveriam gozar do privilégio da reeleição, pelo menos em mandatos consecutivos. A compensação estaria no alargamento do período da gestão, podendo estender-se a cinco ou seis anos. Samuel Hanan sequer esqueceu que o responsável pela licença nada poética de reeleger-se foi o Presidente Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo que, criança, sonhava em ser Papa. Esse primeiro tópico parece ter seu complemento no de número 10, referente à proposta de ilegibilidade de familiares de gestores que incorreram na geração de déficits primários. Embora não esteja convencido de que essa seria a única hipótese de criar esse empecilho para a volta de maus gestores ao poder – e por isso mesmo - vejo-a como aceitável, desde que esticada para impedir que familiares daqueles agentes públicos os sucedam nos cargos. Aqui, o critério valeria, segundo o entendo e parece entender também o autor do texto ora comentado, para a suplência dos senadores. A não ser que a substituição de um senador se desse não pelo suplente, mas pelo seu concorrente mais próximo em número de votos. A figura do suplente na chapa composta para o Senado, portanto, perderia o sentido que tem e sua eliminação corrigiria equívoco danoso à democracia. Num certo sentido, este comentário participa da sugestão listada como a quarta pelo autor de Tarefas para o Congresso em 2024. Ali está posta a ojeriza de Hanan – da qual participo – à hereditariedade das capitanias que os profissionais da política entendem salutar.

O segundo tópico, a restauração da prisão de condenado em segunda instância, coletiva, e a imprescritibilidade de crimes contra a administração pública importariam alteração constitucional, mas não só ela. A interpretação consagrada pelo STF tem base na Constituição, que exige a coisa julgada, para colocar alguém atrás das grades. Enquanto houver dúvida e a possibilidade de reformar/corrigir o conteúdo da sentença ou acórdão, o feito está aberto, não se está diante de uma coisa julgada. Não é gratuita, portanto, a interpretação do Supremo, sobretudo quando à democracia e às sociedades interessa mais evitar a punição de inocentes que a aplicação de pena a supostos culpados. Sem uma análise jurídica (de que os simples operadores do Direito não se podem sair com êxito) que leve em conta o princípio in dubio pro reu e a ampla defesa, seria temerário proceder à alteração sugerida.

Quanto ao foro privilegiado, tópico alinhado em terceiro lugar pelo autor do texto sob comento, removê-lo de nossa legislação, mesmo em seu mais alto nível, deveria ser ponto de honra a ser reivindicado pelos atuais titulares beneficiários. Segundo Hanan, mais de 50.000 agentes públicos dispõem dele e o utilizam menos para defender o direito de expressão e opinião, que para acobertar algum delito de que tenham sido acusados. Isso acaba por constituí-los em cidadãos de uma casta superior, não representantes legítimos de cidadãos que eles mesmos têm como inferiores. O engenheiro toleraria a manutenção dessa teratologia política e jurídica para os chefes dos poderes republicanos. Penso, ainda que sujeito a crítica e à tolerância, que à própria autoridade de que se revestem tais agentes, corresponde maior dever de lhes ser cobrada conduta afinada com o interesse dos cidadãos.

A menção aos vícios dos Tribunais de Contas, do TCU aos correspondentes órgãos estaduais, conduz Hanan à (quinta) proposta de despolitização desses órgãos assessores do Poder Legislativo. Também nesse caso será sempre oportuno lembrar o que me parece constituir motivo de chacota a aplicação do dinheiro público ser entregue à apreciação de pessoas – familiares e sócios; afilhados ou apadrinhados, não importa – de algum modo vinculadas a elas. Pode ocorrer, não se duvide, muitos desses apreciadores técnicos (não são julgadores, se nem ao Poder Judiciário pertencem) em algum momento terão sido cúmplices dos agentes autorizadores de despesas. Há que ser encontrada alguma forma de saneamento desse equívoco (?), devendo ser posta apenas a questão: a quem isso interessaria, além da população que paga tributos e não tem satisfeitas suas necessidades?

A redução das verbas destinadas aos Fundos Partidário e Eleitoral é outra (a sexta) reivindicação de Samuel Hanan. Observe-se que o autor não invalida o financiamento das atividades, nem de partidos, nem do processo eleitoral. Apenas considera (e quem não o faz?) exorbitante o volume de recursos que proveem os cofres, dos partidos sobretudo. O dinheiro gasto com a Justiça Eleitoral é de mais fácil controle; o que escorre para os partidos é posto a serviço, não raro, de mobilizações antidemocráticas, como se tem sabido. Se estas não se constituem atividades rotineiras, são-no, porém, aquelas que dizem respeito ao empreguismo de correligionários malsucedidos nas eleições ou por alguma razão impossibilitados de ganhar a vida de outra forma. Ao menos, dignamente.

A sétima sugestão de Hanan estima que os gastos públicos devem ser limitados, à razão de 1,5% do PIB; algo como por ele indicado, próximo de R$ 160 bilhões/ano. Confesso a impossibilidade de emitir opinião sobre os valores, sem descartar a hipótese de que certa limitação, oscilante dentro de uma faixa percentual (1,5%? 3%?...?), seja desejável. Não creio produtiva a ideia de fazer isso sem antes saber quais as reais carências da população e quais os recursos com que contam as funções do Poder Público, para dar conta da demanda. Lembro aqui da velha questão do tamanho do Estado. Uns preferem-no pequeno; outros desejam vê-lo como o grande pai, intrometido em tudo, tudo provendo a todos. Abomino a discussão posta nestes termos. Onde quer que se faça necessária a presença dos serviços do Estado, lá ele deverá estar. Onde o ambiente seja mais propício à atuação do setor privado, seja este chamado a operar. Por isso, sem saber onde há carências e a quanto elas montam, impossível fixar tamanho do Estado e dos recursos a serem aplicados. Agrada-me, porém, a indicação de Samuel Hanan, ao sugerir a redução da desigualdade social como resultado da economia de recursos federais. É de que trata o item 8 do texto comentado aqui. O percentual de 40% dessa poupança estaria vinculado às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, uma espécie de filho temporão da legislação geradora da SPVEA (hoje Sudam), SUDENE e SUDECO, dos anos 1950. Afinal, a redução das desigualdades regionais e sociais constitui um dos objetivos da República Federativa do Brasil. Está na Constituição. Também merece atenção a proposta de que a taxação do consumo não ultrapasse 15%. Em especial, se mantida tributação mais adequada aos bens ostentatórios e outros, como armas, perfumes, bebidas alcoólicas e artigos de luxo. Quem sabe assim iates, helicópteros e outros balangandans pagariam impostos?

Falta apenas o nono tópico, consistente na sugestão de revisão do Código de Processo Penal. A intenção seria a de acelerar o desfecho dos tortuosos processos judiciários, em especial os que envolvem ilícitos contra a administração pública. O caráter eminentemente técnico dessa proposta intimida os que, como eu, há tempos abandonaram a banca advocatícia. Basta lembrar, porém, que muito da vagareza com que se move o Poder Judiciário, de alto a baixo de sua estrutura, tem a ver com a enorme demanda de serviços que lhe são solicitados. Não se há de ignorar, todavia, que dos três poderes republicanos, só o Judiciário não goza do direito e do poder de agir sponte sua. Se não há quem lhe bata à porta, ele não se move. Um juiz, um desembargador, um ministro não podem sair distribuindo sentenças e acórdãos, sem que titular de direito que se sinta lesado peça socorro ao Judiciário. Até onde tive conhecimento, grande parte das demandas em tramitação nos vários graus e instâncias judiciais têm como motivo lesão cometida por autoridades públicas, do alto de sua arrogância. Há que ponderar, ainda, que o Poder Judiciário brasileiro, como o da Turquia, e logo se verá, o da Argentina, estão ou estará sob assédio. Porque gozem do direito de, sponte sua, agir sem julgar, Legislativo e Executivo praticam atos lesivos à sociedade e aos indivíduos, nem sempre todos levados ao único dos poderes que socorre os injustiçados. Daí vem a necessidade de (e aqui adianto minha sugestão) termos Ministros do Supremo nomeados pelo Presidente do STF, não pelo Presidente da República. O controle do Senado, ao qual é reservada prerrogativa de sabatinar os indicados, que se disponha a fazer trabalho limpo, em que a obediência rigorosa à conduta ilibada e ao notório saber jurídico se evidencie.

Resta-me apenas lembrar ao ilustre autor do artigo ora comentado, a desídia do Poder Legislativo, relativamente ao cumprimento do que determina a Constituição, exigente da formulação de leis complementares que possibilitem a efetivação e o gozo de direitos estabelecimentos na Lei Maior. Disso ninguém trata. Por isso, alguns dos dispositivos constitucionais são substituídos, sem que a complementação que transformaria supostas intenções em direitos efetivos ocorra.

Manaus, 10 de dezembro de 2023.

José Seráfico, Professor Titular aposentado da UFAM

 
 
 

Passados quase 140 anos, desde que se anunciou a abolição da escravatura no Brasil, conclui-se com a frustração do propósito da chamada Lei Áurea. Fato inconteste, pessoas continuam a ser escravizadas, sem que os novos senhores de engenho, capitães-do-mato ou coronéis de barranco recebam o tratamento merecido - a punição rigorosa pela prática do hediondo crime. Ao contrário, junto com o frequente flagrante da existência de escravidão, podem-se também constatar benefícios oferecidos pelo poder público aos criminosos que a mantêm. Mais uma prova, apesar de dispensável, da iniquidade e dos valores desumanos característicos da forma de exploração do homem e da natureza, como a temos testemunhado. Alguns dirão, como têm dito em relação a outros fenômenos e práticas igualmente repulsivos, que esse é o preço a ser pago pelo desenvolvimento. E a desigualdade cresce, aumentando o fosso entre os que tudo têm e mais querem, e os outros, explorados do único bem de que são possuidores, a força de trabalho. A avidez, a ganância e a voracidade, peculiares ao processo de acumulação como o conhecemos, determina alterações nas formas de controle e apropriação dos resultados econômicos. Tais alterações, todavia, não resolvem os problemas dos trabalhadores, nem seria mais que ingenuidade (se não coisa pior) esperar isso. É da essência do capitalismo que decorrem as práticas do sistema econômico, fundado, nesse caso, na ambição, na desigualdade e no desprezo por valores éticos e visão do mundo. Mais grave, ainda, alimentado por falácias de que a competição é de algum modo benéfica ao processo civilizatório. Não é isso o que se tem visto. Cresce a desigualdade, em escala planetária, crescendo de igual modo os riscos que muitos se negam a reconhecer - a dissolução do tecido social, provocado por guerras muito bem planejadas; e a destruição do Planeta. Pior, ainda, quando o pretexto de defender a tradição judaico-cristã serve de escudo a propósitos tão desumanos. Esta é uma boa hora para tratar disso, quando a maioria dos cardeais escolheu o substituto de Francisco. Um líder religioso que decidiu chamar-se pelo mesmo nome do Papa que fundou a moderna doutrina social da Igreja. Robert Francis Prevost é Leão XIV.

 
 
 
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