Claro e nítido, como o ronco do trovão*
- Professor Seráfico

- 03false05 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)
- 3 min de leitura
Todos nós conhecemos na infância o ronco amortecido de um trovão distante. Algumas vezes, mas nem sempre, precedido de raio de luz a ferir as nuvens negras da noite. Quanto mais criança, mais medo temos de uma presença impalpável do desconhecido, do anúncio estapafúrdio de que algo muito mau se arquiteta em cavernas profundas e talvez povoada dos mais repelentes vermes e morcegos. A infância é aterrorizante.
Minha geração, nascida nos anos 40 do século passado, só teve a luz do relâmpago e o estrondo do trovão como fonte de temor. Nossos irmãos de geração na Europa, na Ásia, em partes da África e sobretudo na Rússia, onde morreram mais de 20 milhões de pessoas, certamente conheceram o medo mais trágico de luzes de explosões e roncos de canhões.
Hoje, tanto no Brasil quanto em quase todas as áreas habitadas deste planeta, nem crianças nem adultos dormem em paz. Num retorno cada vez mais crescente do totalitarismo que havíamos derrotado na Segunda Guerra Mundial, renasce nos Estados Unidos da América, líder de nossa infância e orgulho de nossa juventude, a metástase do câncer que pensávamos haver extirpado, o cadavérico aceno de mortos-vivos a nos saudar.
Um presidente desde sempre, é justo lembrar, assinalado pela Sociedade Psiquiátrica de seu país como incapaz de exercer as funções presidenciais por excesso de narcisismo patológico, revela-se agora sem sombra de dúvida o medo maior de crianças e adultos pela onipotência doentia que se desdobra a cada dia como ondas sucessivas de insânia em nossas praias.
Atraído sempre pelos holofotes da publicidade gratuita de uma imprensa acrítica e condescendente, Sua Excelência se esparrama no leito do poder como o bebê chorão a sempre buscar o seio farto da mãe- pátria, para logo depois , numa clivagem kleiniana, tentar arrancá-lo numa fúria esquizoide.
Autocandidato ao prêmio Nobel da Paz, retira das gavetas cavernosas a possibilidade de retomada de ensaios nucleares de novas armas de destruição em massa. Que mente seria tão demente a não perceber a incongruência das duas aspirações?
Homem sequer capaz de perceber, nos encontros com mais espertos e sagazes chefes de Estado que o recebem com as pompas de estilo, nos nosocômios universais, a ironia com que lhe deixam sair como vencedor de pirras batalhas inventadas por sua fantasia de Rei do Universo, espada na cinta e sinete na mão.
E neste bailado à beira do precipício, sua corte de lambe-botas, a cada minuto, o estimula a um show diário de desrespeito a leis, tratados e convenções que são rasgados como se fossem lixo da história, e os vemos substituídos por mandamentos divinos, assim determinados por fundamentalistas a proceder de forma e jeito de adversários igualmente fundamentalistas dispostos a fazer da Terra o planeta dos Deuses Decadentes.
Nada mais próximo de Mussolini. Nada mais similar ao espaço vital de Hitler.
Hoje, na nova concepção geopolítica da sacrossanta primazia do hegemônico, a servidão humana universal é o preço da nova Paz.
E desta forma, diária e sistematicamente, a tríade tão conhecida do Deus-Pátria-Família serve de certidão de boa-fé para o renascimento da violência governamental como forma de diálogo social. E não mais que de repente, nossas ruas e avenidas se tornam, mais uma vez, os cenários de morticínios entre irmãos. O envio de forças paramilitares aos Estados governados por Democratas nos Estados Unidos é absolutamente eloquente. A possível vitória de um articulado oposicionista islamico como prefeito de Nova York, já agora nos próximos dias, merece acompanhamento diário. No fundo, só em Nova Yorque se poderia imaginar este embate entre um islamista e Trump.
Enquanto isto, em Belém do Pará, reúnem-se os que acreditam na sanidade. A começar pelo governo do Brasil, a que não posso deixar de render minhas homenagens e meus agradecimentos pelo equilíbrio e serenidade que vem demonstrando nos jardins do sanatório geral.
Taí uma coisa que não se pode esquecer. O Brasil está dialogando com uma paciência franciscana. Inclusive com os perdidos no parque do próprio Brasil que continuam a convocar fantasmas do passado na esperança de nos levar a todos na mais absurda vigarice jamais acontecida entre nós. E neste momento, mais uma vez, a mensagem dos perdidos no parque é a violência armada como forma de bandeira nacional.
Mas algo me diz que desta vez, diante de tanta insanidade, nós somos dos poucos que ainda conhecemos o caminho de casa. Vai dar trabalho, mas a casa, modesta, é nossa.
ADHEMAR BAHADIAN
_______________________
*Jornal do Brasil, 02/11/2025

Comentários