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Pedro, caro e jovem amigo,


Veio a calhar o nosso encontro do último sábado. Se nada de extraordinário houve na acolhida que lhe proporcionei e no café que Pessoa nos fez sorver, o pouco tempo de convívio enriqueceu-me e enriqueceu minha pobre biblioteca. Interrompo a leitura do seu CRÔNICAS DE UM POETA CRÔNIC0, ultrapassadas as primeiras páginas. No prefácio, em tintas transparentes, nada rui; antes, se constrói. Ali está a base sobre que se assenta sua obra literária. É forte e duradoura a argamassa dos alicerces, vocação e talento capazes de prometer edifício sólido e harmônico. Conheço seu trabalho, de outros carnavais. Sem Momo, com muita fantasia e – espero – sem surdos. Sem fantasia não se faz literatura. Muito menos, Vida. Aos surdos passa despercebida a boa mensagem, aquela que da Literatura se extrai. Lido o texto escrito com as cores da paleta de um pintor, a despeito da sugestão nominal – o Machado derruba e faz ruir. Não é esse o caso, porém. A mesma ferramenta, quando provém de boa paleta, também ajuda a erguer. Ainda mais quando tem boa matéria-prima. É o caso. Passei à sua apresentação. Prova de que o autor nem sempre disse tudo o que gostaria, nos textos seguintes. Nem caberia dizê-lo, como se sabe. Pois já nessa primeira parte de sua obra encontro mote para nossa conversa. Começo por aplaudir seu conhecimento a respeito de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, o João do Rio. Não sei se encontrarei mais que uma dúzia de pessoas que ao menos já ouviram falar dele, o jornalista Paulo Barreto, do início do sec.XX (1881-1921), nesta Manaus de 2023. No entanto, João foi um dos primeiros cronistas do jornalismo brasileiro. E o próprio inventor do jornalismo investigativo no País. Figura tão controversa e vária, quanto estava no avesso do modelo cultivado por nossos antecessores da belle époque. Preto, homossexual, abdominoso, não era rico apenas no estilo, na disposição para a polêmica e no longuíssimo nome, quase um aristocrata na forma. De vestir-se, identificar-se, viver. Ele o era, também, nas formas como aparecia abaixo do título de seus textos – artigos, ensaios, pequenas notas, peças teatrais. Ora chamavam-no Paulo Barreto; ora, Joe; ora assumia outra identidade, mantendo intocado o texto ligeiro, leve, elegante como devem ser os bons textos. Muito justa sua menção a que João do Rio é do grupo de cronistas da belle époque. Senti muito a falta de alguns cronistas que você chama modernistas. Os que você menciona merecem o título, mas não só eles. Por que ausentes o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos, o Stanislau Ponte Preta ou Sérgio Porto, o Fernando Sabino, o Otto Lara Rezende, o Pongetti? Fico nesses, certo de que alguns outros mereceriam pelo menos a lembrança. Não esqueço, eu mesmo, que Nélson Rodrigues também foi cronista. Especializado em futebol e outros dramas da Vida. Em Fluminense, mais que em tudo.

Comecei, finamente, a ler as crônicas. Sem perder a convicção de que, gênero (ou espécie literária?) de origem atribuída ao Brasil, disso ainda não estou totalmente convencido. Penso, ao contrário do que você afirma, que a crônica nunca está à frente de seu tempo. Pelo simples fato de que ela, fiel a Kronos, é seu próprio tempo. É dele que fala cada cronista. Como o fazia o flâneur João do Rio. A obra A alma encantadora das ruas (Editora Garnier, Paris, 1905) diz tudo. Ou quase.

A leitura seguirá em frente, tudo a seu tempo. Se não lhe incomodo, mais terei a dizer. Disso estou certo, tão agradável e instigadora é a leitura, quando se leem bons autores.

Abraço fraterno.

Seráfico

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*Enviada ao poeta e cronista Pedro K. Kalheiros.

 
 
 

Consulto o pai eterno de todos, o dicionário. Lá aprendo que são dados nomes às coisas para que elas mantenham sua individualidade, sejam conhecidas por suas peculiaridades. Pelos traços e características que os fazem distintos de outras coisas. Logo percebo quanto a abrangência de um termo não é igual à do outro. Se a todos os objetos inanimados podemos chamar de coisas, não pode impunemente receber o mesmo tratamento um ser vivo. Dentre as variedades deste, temos os seres humanos, os outros animais e os vegetais. São animados todos, porque dentro deles há vida, ânima, alma. Por isso, quando falo homem, sei não estar me referindo ao grupo a que pertence ou classificamos os seres humanos. Ou aos vários grupos a que ele se vincula, ao l

ongo da vida. A família, a vizinhança, a escola, a igreja, a organização em que trabalha. Também o espaço geográfico por ele ocupado - o bairro, a zona, a cidade, o Estado, a região e o país. O conceito atribuído a cada um desses espaços reconhece as peculiaridades por ele ostentadas. Dizemos do Brasil que, localizado na porção sul do continente americano, ele ocupa espaço maior que 8 milhões e meio de quilômetros quadrados; esse espaço maior contém 5 regiões, cada uma delas com atributos físicos e culturais distintos, em relação às demais. Quando digo ou escrevo Brasil, é àquele pedaço da América do Sul, não a qualquer outro, que me refiro. Se falo da Amazônia, eu e meu interlocutor não temos dúvida a respeito da abrangência de minha abordagem. Escrevi tanto, até aqui, apenas para dizer da minha ojeriza e da minha contida irritação, só de ouvir ou ler a expressão como um todo. A não ser que eu tome todo interlocutor como um ignorante absoluto dos objetos, espaços, relações e circunstâncias de que tratamos. Por favor, poupem-me dessa forma de tortura! Também peço me poupem do uso indevido e confuso de certa expressões inadequadas, além do onde abusivo, que serve para substituir o quando, o em que/no qual, para ficar nestes dois infelizes exemplos. Já nem menciono o saraivada, que deu para qualificar ações que nada têm a ver com a palavra. O verbo assolar tem tido semelhante serventia. Ou o nome das coisas não tem a menor importâ ncia?.

 
 
 

Faz poucos dias, uma mulher foi morta no Município de Presidente Figueiredo. Venezuelana, palhaça, a vítima percorria a América do Sul, montada em uma bicicleta. Fazia oito anos, morava em Manaus. Presumo tratar-se de uma artista de rua como as muitas que angariam alguns trocados com os quais possam sobreviver, embaixo dos semáforos das esquinas de Manaus. Trabalhando no que sabia fazer e sobrevivendo com dignidade. Chamava-se Julieta (Hernandéz Martinéz). Tinha 38 anos. Só não teve um romeu capaz de defendê-la, embora nenhum mal fizesse aos que abordava, na sofrida luta pela sobrevivência. Que acabou perdendo. Mais que simples e escondida notícia de página policiai, o drama dessa Julieta violentada é um retrato. Retrato de uma realidade sórdida, ardida, impudica. Talvez a xenofobia de alguns espécimes que se dizem semelhantes a ela tenha a ver com o drama de Julieta. Sem Verona. Sem outros verões. Vida agora sem sol. Não sou o único que ouviu e continua ouvindo palavras insultuosas, agressivas, desumanas, quando os xenófobos dirigem seus preconceitos àqueles venezuelanos ou haitianos que aqui encontraram abrigo e solidariedade. Nossos irmãos originários também sabem do que trato. É menor a população dos que fazem do preconceito uma regra pétrea de vida. Não basta, porém, sabê-los poucos. Importa reconhecer que eles existem. Um só que houvesse, não a multidão em que já se constituem, seria o suficiente para alimentar e alimentar-se do ódio que deu de ser nossa companheira. A tal ponto que a morte da palhaça só conta nos registros policiais. E no lamento e choro das pessoas que ainda guardam dentro de si um coração. E têm na cabeça a solidariedade e o que ainda pode restar da condição humana. Desafinados todos eles, talvez. Mas certos de que no peito de um desafinado ainda bate um coração. Pelas tantas julietas e marias. E Maryelles. Pelos que, capazes de levar a alegria aos seus contemporâneos, sentem-se diminuídos, quando a Vida desprezível de uns sacrifica a Vida construtiva e alegre de tantos.

 
 
 
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