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Professor Seráfico - 7 de out. de 2020
- 8 min de leitura
O evento de que ora todos participamos tem muito mais que uma celebração. Ele o é, claro, porque marca o lançamento de mais uma edição da Revista Terceira Margem Amazônia. Desta terão falado outros dos muito interessados em conhecer por dentro a região a que faz referência. Por isso, pouco eu teria a acrescentar – se eu por acaso o tivesse.
A celebração resulta do reconhecimento pelo trabalho meritório dos organizadores, que vejo bem representados nas pessoas do sociólogo Lindomar de Jesus de Sousa e Silva e do economista Olenilson José Pinheiro. Por eles levo meu cumprimento a todos os que, organizadores ou autores, proporcionam aos estudiosos da Amazônia a oportunidade de informar-se e, graças a isso, discutir fundamentadamente alguns dos problemas que se colocam diante de todos aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir.
Se os olhos verão condições de superar as fases invernosas de nossa economia, a do primeiro setor em especial, os ouvidos levarão a mente a enriquecer-se, graças às exposições e debates que a celebração provoca e favorece. Aqui, tudo depende de nós.
Assim, junto ao caráter de celebração, registro outro, propiciatório – de que haverá de resultar o encaminhamento de críticas e sugestões aptas a remover os empecilhos que se têm imposto à economia do primeiro setor, na Região. Oxalá haja ouvidos capazes de captá-las!
Tentarei responder à provocação feita pelos organizadores deste encontro, obediente a três questões julgadas fundamentais à compreensão dos problemas e à identificação dos que podem equacioná-los, quem sabe resolvê-los.
O primeiro desses problemas diz respeito à função de uma publicação acadêmica e a interação das instituições de pesquisa e ensino superior com a sociedade e suas lideranças. Isso significa incursionar na própria maneira de ser da academia. Tanto quanto na observação do comportamento dos agentes políticos que atuam.
Parece definitivamente ultrapassado o tempo em que a academia se supunha um gueto de sabedoria, separado da sociedade que a mantém. Ainda que persistam alguns resquícios dessa percepção malsã, e conduta igualmente perniciosa, estamos falando de exceções, não mais da regra geral. Não fosse assim, os conhecimentos tradicionais permaneceriam no esquecimento, tradutor de certo pensamento preconceituoso e procedimento autoritário.
Sabe-se, hoje, quanto as práticas tradicionais contribuem para resolver problemas que a enfatuada e pernóstica ciência positivista não logrou desvendar.
Daí resulta a imprescindibilidade de a academia permanecer integrada ao meio em que atua, sem perda de atenção e interesses - não raro, beirando a absorção total – pelos laboratórios e gabinetes das instituições. Universidades e institutos de pesquisa, portanto, precisam cada dia mais ver-se como partes integrantes da sociedade, tendo nela sua razão de ser e produzir. Estou definitivamente convencido de que o conhecimento não divulgado corresponde à ignorância.
Igualmente, as lideranças políticas não podem perder de vista a contribuição indispensável à solução dos problemas originada na e oriunda do ambiente acadêmico.
É como se uma – a academia – e outra, a atuação dos líderes, constituem-se moeda em que uma face não faz sentido quando carece da outra. Não é que os meios de divulgação do trabalho acadêmico sejam uma ponte entre a sociedade e a academia. Mais que isso, ambas integram e se integram num ambiente maior, a que se dá o nome de sociedade. Então, por que torna-las indiferentes, uma à outra?
O problema que destacarei em segundo lugar refere-se a certo esquecimento dos pesquisadores e lideranças, quanto a temas e problemas experimentados no dia-a-dia dos habitantes de certo lugar. No caso específico, quanto as vicissitudes, as dificuldades e as questões ligadas ao cotidiano dos amazônidas têm sido contempladas pelo meio acadêmico e seus fazeres.
Lembro a grande lição de Paulo Freire, quando elaborou sua pedagogia do oprimido. Como o consagrado pedagogo, sempre será bom atentar para a realidade vivida pelos indivíduos, toda vez em que se pretexta intervir em sua existência. Só assim seremos capazes de validar o conhecimento científico, acadêmico portanto, a partir dos sujeitos aos quais se deseja aplica-lo.
Exemplifico, louvando-me em experiência compreendida por apenas muito poucos dos contemporâneos do fenômeno a que me reportarei. É certo que outros, muito atentos às consequências dele, podem tê-lo percebido em sua inteireza, mas os interesses individuais sobrepujaram o que se poderia, de uma perspectiva solidária e socialmente apreciável, alcançar de positivo.
Refiro-me à Zona Franca de Manaus. Surgida no final da década dos anos 70 do século passado, ela foi anunciada como uma novidade capaz de redimir a dívida social dos países. Esquecido durante cerca de cinco décadas, o Estado do Amazonas, sua capital em primeiro lugar, teria resgatada tal dívida, porque ali se iniciaria processo econômico sustentável (para usar o jargão em moda), de que se beneficiariam todas as populações amazônicas.
Ultrapassado o primeiro momento, de faceta marcadamente comercial, logo seria implantado parque industrial apto a assegurar a consolidação da experiência, distribuindo com mais justiça a riqueza por ventura produzida.
Reproduzido o capital aqui investido, não tardaria a que o setor primário recebesse também os benefícios anunciados. O interior do Amazonas, então, passaria a revelar dinamismo econômico jamais experimentado. O caboclo não mais teria que migrar para a capital, eis que teria encontrado em seu próprio lugar de nascimento todas as condições de fazer-se realmente humano. O ser humano, portanto, teria tratamento adequado a tal condição. Isso, sem causar danos à natureza, nem disseminar a cultura da violência com que se convive.
Ai dos que ousaram contestar tais previsões. Ai de quem se atrevesse a pôr em dúvida a sabedoria da iniciativa. Afinal, aos ditadores não ocorre pensar que nem eles sabem tudo, nem são raros os seres humanos dotados de inteligência.
A novidade anunciada não foi senão a reprodução de 116 experiências anteriores, com centenas de zonas francas ou instrumentos semelhantes implantados em quase todos os continentes. Muitos deles, à época já apresentando as restrições que foram ignoradas quando se criou a ZFM.
Ao invés de favorecer investimentos em atividades que aproveitassem a riqueza natural da Amazônia, a preferência foi por facilitar a penetração de capitais em negócios interessados no deslocamento de suas unidades produtivas para lugar onde as taxas de retorno se revelassem mais generosas.
Por isso, Manaus foi o lugar escolhido, superando a disputa com o Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras. Aqui, não se tinham organizações sindicais fortes. Aqui, a população carecia da oportunidade de emprego, sendo que o conhecido fenômeno do êxodo rural contou com a boa-vontade dos governantes. Para tanto, foram extintas as rotas com que o Serviço de Navegação da Amazônia e da Administração do Porto do Pará – SNAAP atendia às populações ribeirinhas mais distantes. Patrick Tissier, um economista francês, abordou com precisão essas relações sempre prejudiciais à maioria dos habitantes da região.
Quando teria sido a hora de direcionar as atividades industriais para o processamento de matérias primas de que a floresta é farta, a opção foi outra.
Os peixes, abundantes ainda nos rios que cortam a Amazônia, sequer foram lembrados. Sempre os tomo como exemplo, porque vejo cumprir-se neles e com eles, a hipótese de somar efeitos para a frente com os efeitos para trás, como costumam apontar os profissionais da Economia.
Quais seriam os efeitos para trás? O investimento na indústria de construção naval. Campo suficientemente conhecido pelos construtores tradicionais, teria muito a prosperar, inclusive antecipando a instalação de cursos ligados a essa atividade nas universidades locais e regionais. A organização dos profissionais do setor pesqueiro e a capacitação para melhor desempenho de suas habilidades certamente aumentariam a produção de pescado. Isso traria a necessidade de também dinamizar e modernizar a indústria do frio. Surgiriam frigoríficos nos pontos mais estratégicos do território da Amazônia, uma vez que o abastecimento da indústria pesqueira se tornaria ponto crucial do processo.
Para a frente poderíamos contar com o surgimento de atividades ligadas ao preparo de conservantes, molhos, embalagens, filetagem e outros tratamentos do pescado, de modo a torna-lo importante item na pauta de exportações do Amazonas. Talvez fosse demais, mas não inoportuno, falar das vantagens de as técnicas de tratamento do pescado sustentarem importante aproveitamento da pele, transformando-a em couro.
A que se assiste, hoje? Os entendidos no assunto afirmam estarem sempre mais longe os locais onde ainda se encontra peixe em abundância. Continuamos a consumir produtos da pesca industrializados em outras regiões ou países. Nossa indústria naval praticamente desapareceu, porque ainda seria leviano afirmar que renascerá com a tímida atenção que lhe tem sido dispensada.
Não é só o peixe, porém que teria papel importante em nossa economia. Animais de várias espécies poderiam concorrer para o suprimento de proteínas à população. Pacas, cutias e porcos do mato são apenas algumas delas. Cabe mencionar quanto isso levaria ao aparecimento de fazendas desses animais e a elaboração de projetos de pesquisa voltados para o conhecimento ainda maior dos hábitos e reprodução dessas espécies. Tanto quanto de outras, que não caberia aqui mencionar. Até porque há neste auditório pessoas muito mais credenciadas a dizê-lo.
O terceiro ponto que me solicitam abordar tem a ver com as demandas da produção científica e a abrangência do interesse que a cerca. Todo cidadão tem demandas, em relação ao trabalho dos pesquisadores e cientistas? Ou, em outras palavras, pesquisa é algo que só interessa aos cientistas?
Ora, ao longo dessa tediosa exposição, talvez já tenha dado para perceber a minha resposta. Como se trata de uma posição pessoal, justo que ela seja mais bem explicitada e, em seguida, posta também em questão.
Tentarei, portanto, ser mais explícito, no mesmo grau em que espero suscitar amplo e aberto debate.
Em que pese a tal sociedade do conhecimento ser pretexto para uma série de decisões governamentais, vê-se uma realidade diferente a cercar a produção e a aplicação do conhecimento. Já não basta a marginalidade atribuída ao conhecimento produzido pelas populações tradicionais. Se isso prejudica o encontro de soluções mais adequadas aos problemas com que se hão as populações, menor não é o desdém deferido às soluções apresentadas pela academia.
É como se a realidade fosse imposta pelos agentes econômicos e políticos, não pelas necessidades que vitimam os seres humanos – de resto, o objetivo a ser alcançado por qualquer atividade humana e por qualquer governo de sociedade humana.
Todos sabemos que governos não têm a menor chance de errar. Admitir que governos erram, mesmo se contam com excepcionais instrumentos de informações (ABIN, EMBRAPA, IBGE, IPEA etc.), equivalerá a absolve-los de culpa que ainda não conseguiram purgar. Acontece de os governantes decidirem e agirem segundo os beneficiários de sua escolha.
Vivemos período muito propício ao aprendizado – também na política. O que a operação Lavajato denuncia, mais que as falcatruas que cada dia nos chegam ao conhecimento, é a ilustração dessa opção, ao invés de equívoco.
Enquanto os bilhões são fartamente distribuídos entre os comparsas, unidades de saúde são fechadas, laboratórios e gabinetes onde se produz ciência são deteriorados. Pergunte-se a quem se conluiam os governantes!
Não são os acadêmicos, nem os trabalhadores que se veem ombreados com os agentes políticos, para resolver os grandes problemas nacionais. Aproximam-se, cada dia mais, os agentes econômicos dos governantes. Nem basta a essa parceria explorar os recursos nacionais, com todas as más consequências que conhecemos. O caso da cidade mineira de Mariana não permite qualquer ilusão. Vai-se ao exterior, onde a aplicação de recursos brasileiros premia a ação das grandes empresas detentoras de fato do poder.
Faltasse alguma razão para a produção científica ser assunto do interesse de todos, não apenas dos que vivem dela ou dela se aproveitam nos processos industriais ou em outras formas de enriquecimento material, sempre se haverá de lembrar que a ciência também tem deveres para com a população. E não apenas porque é dela que vêm os recursos financeiros necessários aos empreendimentos científicos, e acadêmicos em geral.
Fico por aqui, certo de que terei entediado grande parte dos que me ouvem. A razão? Logo a encontro: é que trato de problemas recorrentes, que nem por o ser desapareceram do elenco de vicissitudes que marcam o cotidiano da maioria dos habitantes desta grande planície.
Antes de encerrar, porém, gostaria de louvar a iniciativa dos organizadores deste evento. Se pudesse dizer algo que os estimulasse a multiplicar momentos como esse, e se tal estímulo encontrasse no seio dos que estudam e pretendem estudar a Amazônia e contribuir para seu justo desenvolvimento, já me daria por muito bem pago.
Obrigado.
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*Palestra proferida no lançamento da revista Terceira Margem Amazônia, v.1.n.5.
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Professor Seráfico - 24 de set. de 2020
- 10 min de leitura
Comentários a respeito de dois livros
1. Por recomendação do meu amigo Tenório Telles, na condição de editor, li duas obras das quais tiraria proveito, se quiser ser escritor. A prescrição do meu editor preferido decorre do fato de que reconheço nele, além das qualidades como ser humano, rara vocação para entender de livros e de autores. A essa vocação pode acrescentar-se o prolongado trato com as coisas da arte e da literatura, não fosse ele fino cronista e inspirado poeta.
2. O primeiro dos livros recomendados é o Sobre a escrita. Artes e memórias. Seu autor, o norte-americano STEPHEN KING, é um best-seller do romance policial. Disse-me Tenório, de antemão, que depois da leitura de King é impossível o leitor não se transformar. Deixa de ser o mesmo. Tendo isso em mente, fui à leitura (quase disse à luta), esquecido fugazmente de que a leitura jamais hostiliza, muito menos agride. O inverso de qualquer luta.
3. Encontrei no best-seller norte-americano muitos conselhos aplicáveis ao meu interesse. Não o de me tornar um escritor, pois está longe de mim a pretensão de viver do que escrevo. Apenas o de escrever melhor, mais agradável aos poucos que me leem. A primeira recomendação do autor é muitíssimo pertinente: omita as palavras desnecessárias. Pude, então, perceber quão feio se torna o texto, quando nele encontramos gorduras, que somente tomam o tempo do leitor. Nada mais. Não ajudam a compor o cenário ou a personalidade do protagonista, se não escondem o que de essencial eles trazem em si mesmos. E ainda trabalham para impedir que funcione a imaginação, da qual a natureza não poupou nenhum dos seres humanos. Emagreçamos, portanto, nossos textos – e os teremos melhores. Minha antipatia pelo abuso do pronome relativo que se estendeu a tantos outros, pronomes, nomes, adjetivos – enfim, tudo o que engorda o texto. Reforçou-se em mim a disposição de submeter a rígido regime qualquer texto que, daqui por diante, venha a cometer. Na literatura não existe colesterol bom.
4. O autor nega a possibilidade de fazer um escritor. Exemplifica com seu próprio caso. Ambição, alguma sorte, desejo e um pouco de talento concorreram para ser reconhecido, a ponto de fazer-se (aí, sim!) um best-seller. Que começa por não acreditar na possibilidade de existir uma central de boas ideias. Destas é que resultam as histórias, muitas vezes vindas literalmente de lugar nenhum. Mas não se percam as boas histórias, nem se pense que a primeira ideia sempre prevalecerá. Daí a recomendação: não grampeie manuscritos. O grampo engessa o texto e impede o autor de debruçar-se sobre ele e praticar as cirurgias que se impõem.
5. Nesse ponto, lembrei-me da história contada, a respeito de Edgard Alan Poe. Alegando a vida toda que escrevia de um rompante, afirmava o autor de O corvo ter este poema sido escrito de um só folego. O achado de manuscritos numerosos do festejado poema de Poe acabou desmentindo-o. Reforçou-se o que ouvira, quanto à prática da escrita, da boa escrita – esclareço: rasga-se mais do que se escreve. Ou tanto quanto...
6. King adverte: todo escritor de ficção um dia foi acusado de desperdiçar talento. Foi uma professora que o disse, repetindo o que uma psicóloga um dia afirmou, à guisa de conselho. Assistiu-me, em momento crítico de minha trajetória. Não nos caminhos da literatura, que eu jamais pretendi seguir. Orientava-me, diante do que a ela pareceu um dilema: tornar-me professor de Administração ou escritor. Jamais consegui tornar-me o segundo, mesmo sem me dispensar deste agradável divertimento que me entretém, inclusive neste momento.
7. Interessantíssimo o ambiente que cerca a escrita. No primeiro momento, deve-se escrever com a porta fechada. Porque se está escrevendo para nós mesmos. Contando uma história que satisfaz a algumas das condições acima. Desejamos contar algo, ambicionamos faze-lo e temos algum talento (menor que seja) para levar adiante nossa ambição. Na segunda etapa, a porta deve estar aberta. É a hora da reescrita, quando tudo o que não diz respeito, ou parece gordura, deve ser eliminado do relato. Isso King teria ouvido de um tal senhor John Gould. Possivelmente, mais uma das muitas ficções do autor ora comentado.
8. Quando escrevia um de seus numerosos livros (Carrie, a estranha), quatro problemas se impuseram ao autor, em determinado momento: 1. A história não mexia com ele; 2. Ele não gostava muito da personagem principal; 3. O cenário não lhe era confortável; 4. A história só valeria a pena se fosse longa. As dúvidas serviram para ele concluir que nem sempre a ideia que o autor faz da personagem é correta e que isso não deve impedi-lo de perseverar. Carrie, a estranha foi o primeiro grande sucesso de vendas de Stephen King.
9. Quando o escritor norte-americano se viu diante – aí, sim – de um dilema (abandonar o sonho de escrever e entregar-se ao álcool) ele percebeu que a resposta estaria numa conclusão tão simples: não parar de escrever. Foi o que fez. Também concluiu que a vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário.
10. Leia a mais não poder. No seu gabinete refrigerado. Na sala de espera do escritório do advogado. Na cadeira desconfortável da antessala do médico, cercado de periódicos em edições velhas. No saguão do aeroporto. Na fila do PAC. Veja como King arremata o assunto: Nessas horas, para mim, um livro é vital...não tenho um lugar favorito. Ler, ler e ler, cada vez mais – eis o segredo onde se esconde a inspiração de quem um dia deseja escrever. Essa é uma conclusão, que nem por ser adotada por mim, deixa de ter sido para tantos outros. Uns se fizeram escritores, best-sellers a minoria. Outros, como eu, pelo menos encontram ocupação inofensiva e se divertem...
11. Se o texto descreve em detalhes o cenário ou as personagens que por ele desfilam, é preciso cuidar para não transbordar. Uma excessiva atenção aos detalhes (que) tira toda a diversão da escrita. Isso não é prosa, é um manual de instruções. Grande Stephen King!
12. Passemos à Caixa de ferramentas. Aqui, o autor assemelha os instrumentos indispensáveis à boa escrita àqueles usados por outros operários. Na caixa em que esses instrumentos são arrumados é dada prevalência aos mais comuns, os que são necessariamente utilizados, seja qual for o serviço. No caso do escritor, a ferramenta mais importante, a que estará no segmento de cima da caixa é o vocabulário. Não a quantidade de palavras, nem seu comprimento. Stephen King aconselha usar o de que se dispõe acertadamente. Use a primeira palavra que lhe vier à cabeça, se for adequada e interessante – eis como ele sintetiza a lição. Sem esquecer que a palavra é apenas uma representação do sentido.
13. A gramática (!) também merece estar na primeira divisão da caixa de ferramentas. Hilária e irônica é a comparação feita com o vestuário de alguém: Se você consegue se lembrar de todos os acessórios que combinam com sua roupa...então é capaz de lembrar a diferença entre gerúndio e particípio. O remate não poderia ser melhor: Uma construção gramatical ruim produz frases ruins. Para confirmar isso, King afirma serem substantivos e verbos as duas classes indispensáveis na escrita. Convém observar, segundo sua lição, o caráter estrutural que a gramática oferece, quando queremos construir um pensamento e colocá-lo no papel. Ela não é apenas chateação.
14. Evitemos as expressões-clichês. Alguns exemplos são dados, como o fato de que ou neste momento do tempo. Acrescento: fazer o dever de casa; como um todo; a nível de. É claro que nem eu, nem King esgotamos o elenco dessas agressões ao bom gosto e à sensibilidade de quem aprecia ler. Outra coisa a evitar refere-se à voz passiva. A não ser que valorizemos os manuais de instrução e (com o que nem sempre concordo) argumentação de advogados. Sintetizo o que pensa o romancista norte-americano, quanto ao advérbio. Ele não é seu amigo. Em especial os terminados em mente. Percebe-se, mais que ojeriza, certa hostilidade de King em relação a eles. A tal ponto, que afirma estar pavimentado por eles o caminho para o inferno.
15. Proíbem-se, também, segundo Stephen King: o mau uso dos verbos dicendi; o medo – a raiz de toda má escrita; a afetação. O – chamemo-lo assim – design, como disposição das partes de uma frase, está geralmente no parágrafo. Todo cuidado na sua formulação não é perda de tempo. Mesmo os textos simples e prosaicos, como as crônicas, não dispensam a estrutura frase-síntese-seguida-de-frases-descritivas-e-complementares. Pelo menos, como a vê nosso professor na arte da ficção.
16. Importantíssima a observação reveladora de que a língua nem sempre usa gravata e sapato social. Isso, porque o objetivo da ficção não é a correção gramatical, mas fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história ... O ritmo, parte do arcabouço genético do texto, exige milhares de horas de trabalho de redação e dezenas de milhares de horas na leitura de textos alheios.
17. São duas as teses apresentadas em Sobre a escrita: a boa escrita consiste em dominar os fundamentos (vocabulário, gramática, elementos de estilo) e colocá-los na bandeja certa da caixa de ferramentas. A segunda reconhece impossível transformar um escritor ruim em competente. É possível, todavia, com muito trabalho duro, transformar um escritor competente em um bom escritor. É necessário, para chegar a isso, pelo menos, ler, ler e ... ler. Também escrever, escrever... escrever.
18. Não faltam conselhos referentes ao tempo que se usa para ler e ... escrever. A televisão se torna alvo das críticas do autor, que a considera uma das últimas coisas de que um escritor precisa. Na leitura, recomenda que se fique durante 4 a 6 horas/dia. Na redação, o caráter quantitativo perde, diante do qualitativo. Não é o número de palavras escritas que vale, mas como elas foram inseridas no texto, como aparecem aos olhos do leitor. Uma historinha sobre James Joyce ilustra bem. Ao ser perguntado quanto havia escrito, certo dia, o autor de Ulysses respondeu: sete palavras. Ainda assim, escritas, mas sem ordem no texto do autor famoso.
19. King confessa ser durante a manhã a preferência para escrever. Escrever sem paralisar, para que as personagens não apodreçam e para que o autor não perca o controle sobre o enredo e a história é outro dos conselhos oferecidos. Neste aspecto, creio mais produtiva a escolha de cada um que escreve. Também considero que textos de elaboração indefinida se assemelham a cadáveres insepultos. Chegam a cheirar mal, se o tempo é demasiado. Mas há de ser observada a necessidade de maturação, que só a gaveta proporciona. Maturidade ganha tanto pelo texto, quanto pelo autor, na hora da necessária revisão. Alguém disse que um livro não se conclui, mas se o interrompe. Se não, jamais leríamos algum deles, por inexistente.
20. Também me parece merecedor de reparos o conselho referente à produção da primeira versão de um livro. Para Stephen King, três meses são o limite. Talvez isso se deva à insistência das editoras, ansiosas por lançamentos novos e recolhimento de lucros mais rapidamente. Coisa do mundo de negócios! Outros, escritores tout-court, que vivem de escrever, podem enquadrar-se no modelo de King. Não vale para os não -escritores que, todavia, escrevem...
21. O que é dito no tópico anterior se confirma, ao saber-se que ao entrar em seu novo espaço de escrita e fechar a porta, você já deve ter estabelecido uma meta diária. O que é isso, se não o primado da produtividade, mesmo sobre a criatividade? Coisa do mercado!
22. Parece-me adequado comentar alguns pontos mais dos conselhos do autor de Sobre a escrita, afastada qualquer pretensão de exaustividade. Primeiro, para não ser longo demais; depois, para não correr o risco da repetição; finalmente, para não tornar este texto mais enfadonho do que tem sido. Reporto-me, pois, à construção de diálogos, em que me considero fraco, fraquíssimo. Mais ainda agora, quando encontro escrever bons diálogos não é só um ofício, mas uma arte. Ainda que me julgue honesto, gostaria de saber como aplicar a orientação do mestre: a chave para escrever bons diálogos é a honestidade. A construção de personagens ficcionais ganha dimensão interessante, tornando-as não copiadas diretamente da vida, mas inspiradas em pessoas reais. Creio, nesse particular, que o talento é que fará a diferença entre cópia e inspiração. Não custa lembrar o valor que críticos literários têm atribuído a relatórios oficiais de Graciliano Ramos, quando prefeito de sua cidade, Palmeira dos Índios, Alagoas.
23. Concluído, este texto dias depois mereceu o acréscimo da presente observação. Será lícito buscar a verossimilhança em um texto ficcional? Imagine-se que Leonardo da Vinci, antes de esboçar o desenho do helicóptero, pensasse em aproximá-lo da realidade! ... Afinal, o talento está no escrever ou no criar uma história para ser escrita?
24. Magistral (talvez porque coincida com o que advogo faz tempo) a menção ao caráter mais ou menos autobiográfico inserido em alguma ou algumas das personagens da ficção. Isso não dispensa acréscimos, decorrentes da imaginação, sem limites.
25. A avaliação do texto é tratada quase ao final da obra comentada. Pela importância que atribuo a ela, antes de chegar à mão dos leitores, dedico algumas palavras ao assunto. É na segunda versão que devem ocorrer as alterações julgadas necessárias. Trabalhar o simbolismo e o tema. Antes, o que o autor diz que o tédio (e eu prefiro chamar ócio) pode ajudar nas reflexões sobre a qualidade do que foi e está escrito. Longas caminhadas, solitário, ajudam-no muito.
26. Eis que encontro, à p. 180, resposta para uma das objeções acima indicadas. Nela, lê-se: cabe a você decidir por quanto tempo o livro vai ficar descansando – como uma massa de pão entre uma sova e outra – mas acho que o prazo mínimo é de seis semanas. Aqui, abre-se uma oportunidade para quem escreve fazer diferente do professor.
27. Vale lembrar as perguntas que deve fazer qualquer autor, o que King chama de As grandes perguntas: a história é coerente? Se for, o que vai transformar coerência em música? Quais são os elementos recorrentes? Eles se entrelaçam e formam um tema? Em outras palavras, eu me pergunto, de que se trata, Stevie? Também me (ele, King) pergunto: o que posso fazer para tornar estas questões fundamentais ainda mais claras?
28. Quatro ou cinco amigos devem ler o livro. Algo parecido com meu procedimento, em relação ao meu Bússolas (Manaus, AM, Valer, 2012)? Esses amigos, óbvio, merecem não só o respeito do autor, como têm reconhecida sua competência para opinar sobre a escrita produzida.
29. Não esgoto o assunto, como anunciado. É o que me basta, para perguntar: terei absorvido algum do conteúdo desse instigante autor de ficção, o romance policial em especial? Saberei aplicar o que me foi ensinado? Terei condições de rejeitar algo do que defende o autor? As diferenças entre ele e mim (escritor/não-escritor; best-seller/anônimo; ficcionista/memorialista, se tanto; globalizado/provinciano; preocupado com o mercado/não-tou-nem-aí; anglo-saxão/latino...) repercutem em nossas respectivas obras?
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* O outro livro recomendado por Tenório (Remissão da pena, escrito por Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura de 2014, editado Pela Record, RJ, em 2015), ainda não foi comentado.
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