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Para ler... e escrever*

Comentários a respeito de dois livros

1. Por recomendação do meu amigo Tenório Telles, na condição de editor, li duas obras das quais tiraria proveito, se quiser ser escritor. A prescrição do meu editor preferido decorre do fato de que reconheço nele, além das qualidades como ser humano, rara vocação para entender de livros e de autores. A essa vocação pode acrescentar-se o prolongado trato com as coisas da arte e da literatura, não fosse ele fino cronista e inspirado poeta.

2. O primeiro dos livros recomendados é o Sobre a escrita. Artes e memórias. Seu autor, o norte-americano STEPHEN KING, é um best-seller do romance policial. Disse-me Tenório, de antemão, que depois da leitura de King é impossível o leitor não se transformar. Deixa de ser o mesmo. Tendo isso em mente, fui à leitura (quase disse à luta), esquecido fugazmente de que a leitura jamais hostiliza, muito menos agride. O inverso de qualquer luta.

3. Encontrei no best-seller norte-americano muitos conselhos aplicáveis ao meu interesse. Não o de me tornar um escritor, pois está longe de mim a pretensão de viver do que escrevo. Apenas o de escrever melhor, mais agradável aos poucos que me leem. A primeira recomendação do autor é muitíssimo pertinente: omita as palavras desnecessárias. Pude, então, perceber quão feio se torna o texto, quando nele encontramos gorduras, que somente tomam o tempo do leitor. Nada mais. Não ajudam a compor o cenário ou a personalidade do protagonista, se não escondem o que de essencial eles trazem em si mesmos. E ainda trabalham para impedir que funcione a imaginação, da qual a natureza não poupou nenhum dos seres humanos. Emagreçamos, portanto, nossos textos – e os teremos melhores. Minha antipatia pelo abuso do pronome relativo que se estendeu a tantos outros, pronomes, nomes, adjetivos – enfim, tudo o que engorda o texto. Reforçou-se em mim a disposição de submeter a rígido regime qualquer texto que, daqui por diante, venha a cometer. Na literatura não existe colesterol bom.

4. O autor nega a possibilidade de fazer um escritor. Exemplifica com seu próprio caso. Ambição, alguma sorte, desejo e um pouco de talento concorreram para ser reconhecido, a ponto de fazer-se (aí, sim!) um best-seller. Que começa por não acreditar na possibilidade de existir uma central de boas ideias. Destas é que resultam as histórias, muitas vezes vindas literalmente de lugar nenhum. Mas não se percam as boas histórias, nem se pense que a primeira ideia sempre prevalecerá. Daí a recomendação: não grampeie manuscritos. O grampo engessa o texto e impede o autor de debruçar-se sobre ele e praticar as cirurgias que se impõem.

5. Nesse ponto, lembrei-me da história contada, a respeito de Edgard Alan Poe. Alegando a vida toda que escrevia de um rompante, afirmava o autor de O corvo ter este poema sido escrito de um só folego. O achado de manuscritos numerosos do festejado poema de Poe acabou desmentindo-o. Reforçou-se o que ouvira, quanto à prática da escrita, da boa escrita – esclareço: rasga-se mais do que se escreve. Ou tanto quanto...

6. King adverte: todo escritor de ficção um dia foi acusado de desperdiçar talento. Foi uma professora que o disse, repetindo o que uma psicóloga um dia afirmou, à guisa de conselho. Assistiu-me, em momento crítico de minha trajetória. Não nos caminhos da literatura, que eu jamais pretendi seguir. Orientava-me, diante do que a ela pareceu um dilema: tornar-me professor de Administração ou escritor. Jamais consegui tornar-me o segundo, mesmo sem me dispensar deste agradável divertimento que me entretém, inclusive neste momento.

7. Interessantíssimo o ambiente que cerca a escrita. No primeiro momento, deve-se escrever com a porta fechada. Porque se está escrevendo para nós mesmos. Contando uma história que satisfaz a algumas das condições acima. Desejamos contar algo, ambicionamos faze-lo e temos algum talento (menor que seja) para levar adiante nossa ambição. Na segunda etapa, a porta deve estar aberta. É a hora da reescrita, quando tudo o que não diz respeito, ou parece gordura, deve ser eliminado do relato. Isso King teria ouvido de um tal senhor John Gould. Possivelmente, mais uma das muitas ficções do autor ora comentado.

8. Quando escrevia um de seus numerosos livros (Carrie, a estranha), quatro problemas se impuseram ao autor, em determinado momento: 1. A história não mexia com ele; 2. Ele não gostava muito da personagem principal; 3. O cenário não lhe era confortável; 4. A história só valeria a pena se fosse longa. As dúvidas serviram para ele concluir que nem sempre a ideia que o autor faz da personagem é correta e que isso não deve impedi-lo de perseverar. Carrie, a estranha foi o primeiro grande sucesso de vendas de Stephen King.

9. Quando o escritor norte-americano se viu diante – aí, sim – de um dilema (abandonar o sonho de escrever e entregar-se ao álcool) ele percebeu que a resposta estaria numa conclusão tão simples: não parar de escrever. Foi o que fez. Também concluiu que a vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário.

10. Leia a mais não poder. No seu gabinete refrigerado. Na sala de espera do escritório do advogado. Na cadeira desconfortável da antessala do médico, cercado de periódicos em edições velhas. No saguão do aeroporto. Na fila do PAC. Veja como King arremata o assunto: Nessas horas, para mim, um livro é vital...não tenho um lugar favorito. Ler, ler e ler, cada vez mais – eis o segredo onde se esconde a inspiração de quem um dia deseja escrever. Essa é uma conclusão, que nem por ser adotada por mim, deixa de ter sido para tantos outros. Uns se fizeram escritores, best-sellers a minoria. Outros, como eu, pelo menos encontram ocupação inofensiva e se divertem...

11. Se o texto descreve em detalhes o cenário ou as personagens que por ele desfilam, é preciso cuidar para não transbordar. Uma excessiva atenção aos detalhes (que) tira toda a diversão da escrita. Isso não é prosa, é um manual de instruções. Grande Stephen King!

12. Passemos à Caixa de ferramentas. Aqui, o autor assemelha os instrumentos indispensáveis à boa escrita àqueles usados por outros operários. Na caixa em que esses instrumentos são arrumados é dada prevalência aos mais comuns, os que são necessariamente utilizados, seja qual for o serviço. No caso do escritor, a ferramenta mais importante, a que estará no segmento de cima da caixa é o vocabulário. Não a quantidade de palavras, nem seu comprimento. Stephen King aconselha usar o de que se dispõe acertadamente. Use a primeira palavra que lhe vier à cabeça, se for adequada e interessante – eis como ele sintetiza a lição. Sem esquecer que a palavra é apenas uma representação do sentido.

13. A gramática (!) também merece estar na primeira divisão da caixa de ferramentas. Hilária e irônica é a comparação feita com o vestuário de alguém: Se você consegue se lembrar de todos os acessórios que combinam com sua roupa...então é capaz de lembrar a diferença entre gerúndio e particípio. O remate não poderia ser melhor: Uma construção gramatical ruim produz frases ruins. Para confirmar isso, King afirma serem substantivos e verbos as duas classes indispensáveis na escrita. Convém observar, segundo sua lição, o caráter estrutural que a gramática oferece, quando queremos construir um pensamento e colocá-lo no papel. Ela não é apenas chateação.

14. Evitemos as expressões-clichês. Alguns exemplos são dados, como o fato de que ou neste momento do tempo. Acrescento: fazer o dever de casa; como um todo; a nível de. É claro que nem eu, nem King esgotamos o elenco dessas agressões ao bom gosto e à sensibilidade de quem aprecia ler. Outra coisa a evitar refere-se à voz passiva. A não ser que valorizemos os manuais de instrução e (com o que nem sempre concordo) argumentação de advogados. Sintetizo o que pensa o romancista norte-americano, quanto ao advérbio. Ele não é seu amigo. Em especial os terminados em mente. Percebe-se, mais que ojeriza, certa hostilidade de King em relação a eles. A tal ponto, que afirma estar pavimentado por eles o caminho para o inferno.

15. Proíbem-se, também, segundo Stephen King: o mau uso dos verbos dicendi; o medo – a raiz de toda má escrita; a afetação. O – chamemo-lo assim – design, como disposição das partes de uma frase, está geralmente no parágrafo. Todo cuidado na sua formulação não é perda de tempo. Mesmo os textos simples e prosaicos, como as crônicas, não dispensam a estrutura frase-síntese-seguida-de-frases-descritivas-e-complementares. Pelo menos, como a vê nosso professor na arte da ficção.

16. Importantíssima a observação reveladora de que a língua nem sempre usa gravata e sapato social. Isso, porque o objetivo da ficção não é a correção gramatical, mas fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história ... O ritmo, parte do arcabouço genético do texto, exige milhares de horas de trabalho de redação e dezenas de milhares de horas na leitura de textos alheios.

17. São duas as teses apresentadas em Sobre a escrita: a boa escrita consiste em dominar os fundamentos (vocabulário, gramática, elementos de estilo) e colocá-los na bandeja certa da caixa de ferramentas. A segunda reconhece impossível transformar um escritor ruim em competente. É possível, todavia, com muito trabalho duro, transformar um escritor competente em um bom escritor. É necessário, para chegar a isso, pelo menos, ler, ler e ... ler. Também escrever, escrever... escrever.

18. Não faltam conselhos referentes ao tempo que se usa para ler e ... escrever. A televisão se torna alvo das críticas do autor, que a considera uma das últimas coisas de que um escritor precisa. Na leitura, recomenda que se fique durante 4 a 6 horas/dia. Na redação, o caráter quantitativo perde, diante do qualitativo. Não é o número de palavras escritas que vale, mas como elas foram inseridas no texto, como aparecem aos olhos do leitor. Uma historinha sobre James Joyce ilustra bem. Ao ser perguntado quanto havia escrito, certo dia, o autor de Ulysses respondeu: sete palavras. Ainda assim, escritas, mas sem ordem no texto do autor famoso.

19. King confessa ser durante a manhã a preferência para escrever. Escrever sem paralisar, para que as personagens não apodreçam e para que o autor não perca o controle sobre o enredo e a história é outro dos conselhos oferecidos. Neste aspecto, creio mais produtiva a escolha de cada um que escreve. Também considero que textos de elaboração indefinida se assemelham a cadáveres insepultos. Chegam a cheirar mal, se o tempo é demasiado. Mas há de ser observada a necessidade de maturação, que só a gaveta proporciona. Maturidade ganha tanto pelo texto, quanto pelo autor, na hora da necessária revisão. Alguém disse que um livro não se conclui, mas se o interrompe. Se não, jamais leríamos algum deles, por inexistente.

20. Também me parece merecedor de reparos o conselho referente à produção da primeira versão de um livro. Para Stephen King, três meses são o limite. Talvez isso se deva à insistência das editoras, ansiosas por lançamentos novos e recolhimento de lucros mais rapidamente. Coisa do mundo de negócios! Outros, escritores tout-court, que vivem de escrever, podem enquadrar-se no modelo de King. Não vale para os não -escritores que, todavia, escrevem...

21. O que é dito no tópico anterior se confirma, ao saber-se que ao entrar em seu novo espaço de escrita e fechar a porta, você já deve ter estabelecido uma meta diária. O que é isso, se não o primado da produtividade, mesmo sobre a criatividade? Coisa do mercado!

22. Parece-me adequado comentar alguns pontos mais dos conselhos do autor de Sobre a escrita, afastada qualquer pretensão de exaustividade. Primeiro, para não ser longo demais; depois, para não correr o risco da repetição; finalmente, para não tornar este texto mais enfadonho do que tem sido. Reporto-me, pois, à construção de diálogos, em que me considero fraco, fraquíssimo. Mais ainda agora, quando encontro escrever bons diálogos não é só um ofício, mas uma arte. Ainda que me julgue honesto, gostaria de saber como aplicar a orientação do mestre: a chave para escrever bons diálogos é a honestidade. A construção de personagens ficcionais ganha dimensão interessante, tornando-as não copiadas diretamente da vida, mas inspiradas em pessoas reais. Creio, nesse particular, que o talento é que fará a diferença entre cópia e inspiração. Não custa lembrar o valor que críticos literários têm atribuído a relatórios oficiais de Graciliano Ramos, quando prefeito de sua cidade, Palmeira dos Índios, Alagoas.

23. Concluído, este texto dias depois mereceu o acréscimo da presente observação. Será lícito buscar a verossimilhança em um texto ficcional? Imagine-se que Leonardo da Vinci, antes de esboçar o desenho do helicóptero, pensasse em aproximá-lo da realidade! ... Afinal, o talento está no escrever ou no criar uma história para ser escrita?

24. Magistral (talvez porque coincida com o que advogo faz tempo) a menção ao caráter mais ou menos autobiográfico inserido em alguma ou algumas das personagens da ficção. Isso não dispensa acréscimos, decorrentes da imaginação, sem limites.

25. A avaliação do texto é tratada quase ao final da obra comentada. Pela importância que atribuo a ela, antes de chegar à mão dos leitores, dedico algumas palavras ao assunto. É na segunda versão que devem ocorrer as alterações julgadas necessárias. Trabalhar o simbolismo e o tema. Antes, o que o autor diz que o tédio (e eu prefiro chamar ócio) pode ajudar nas reflexões sobre a qualidade do que foi e está escrito. Longas caminhadas, solitário, ajudam-no muito.

26. Eis que encontro, à p. 180, resposta para uma das objeções acima indicadas. Nela, lê-se: cabe a você decidir por quanto tempo o livro vai ficar descansando – como uma massa de pão entre uma sova e outra – mas acho que o prazo mínimo é de seis semanas. Aqui, abre-se uma oportunidade para quem escreve fazer diferente do professor.

27. Vale lembrar as perguntas que deve fazer qualquer autor, o que King chama de As grandes perguntas: a história é coerente? Se for, o que vai transformar coerência em música? Quais são os elementos recorrentes? Eles se entrelaçam e formam um tema? Em outras palavras, eu me pergunto, de que se trata, Stevie? Também me (ele, King) pergunto: o que posso fazer para tornar estas questões fundamentais ainda mais claras?

28. Quatro ou cinco amigos devem ler o livro. Algo parecido com meu procedimento, em relação ao meu Bússolas (Manaus, AM, Valer, 2012)? Esses amigos, óbvio, merecem não só o respeito do autor, como têm reconhecida sua competência para opinar sobre a escrita produzida.

29. Não esgoto o assunto, como anunciado. É o que me basta, para perguntar: terei absorvido algum do conteúdo desse instigante autor de ficção, o romance policial em especial? Saberei aplicar o que me foi ensinado? Terei condições de rejeitar algo do que defende o autor? As diferenças entre ele e mim (escritor/não-escritor; best-seller/anônimo; ficcionista/memorialista, se tanto; globalizado/provinciano; preocupado com o mercado/não-tou-nem-aí; anglo-saxão/latino...) repercutem em nossas respectivas obras?

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* O outro livro recomendado por Tenório (Remissão da pena, escrito por Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura de 2014, editado Pela Record, RJ, em 2015), ainda não foi comentado.

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