Um médico visionário. Esse o título que Milton Hatoum, o autor de O relato de um certo Oriente, pôs em artigo publicado em 17 de setembro de 2010, na Folha de São Paulo. Nele, o escritor amazonense prestava justa homenagem ao nosso amigo comum Heitor Vieira Dourado, falecido havia apenas alguns dias.
O autor de Dois irmãos, Cinzas do Norte, A cidade sitiada, e Um solitário à espreita reverenciava ali uma das personalidades mais definitivamente humanas que conheci. Conhecemos, Milton e eu. Por causa da proximidade de quase 50 anos que mantive com Heitor, o Agadê dos amigos e admiradores - e quantos eles eram! -, senti-me um pouco homenageado também.
A amizade prolongada e, sobretudo, desinteressada que nos fez muito próximos desde quando éramos ambos militantes da política universitária no Pará, transformou-nos em irmãos de sangue diferente. Assim, tudo quanto Milton disse do amigo comum, ratificou o resultado de minhas próprias observações e aprofundou ainda mais o sentimento de fraternidade somente atraído pelos que se fazem diferentes no trato com as pessoas e com o mundo.
O festejado autor de Órfãos do El Dorado lembra episódio ocorrido com ele, em que o jovem médico amigo de sua família revelava dom encontradiço em somente alguns poucos dos profissionais da Medicina. O diagnóstico de mononucleose, que Dourado firmou, desdenhando do hemograma (é Milton quem o diz), fazia os Hatoum e os Assi conhecerem as capacidades de mago ou bruxo, muitas vezes atribuídas pelo bom humor dos admiradores e amigos, àquele homem a um só tempo corpulento e de maneiras extremamente educadas.
O diagnóstico mostrava para que serviam as horas da noite que o malariologista e infectologista varava, entregue à leitura de livros médicos. Deixava claro a todos quantos dele se aproximavam, também, percepção raramente atribuível aos que pensam que os livros suprem a sabedoria de quem quer que seja. Porque Agadê juntava à facilidade de compreensão dos mistérios de sua especialidade outros mistérios, aqueles que resultam da valorização dos sentimentos humanos, fazendo-nos humanos até aonde poucos chegam.
Transformar pequenos e acanhados espaços em confortáveis e úteis salas pode ser tarefa muito fácil para um arquiteto. Um médico, porém, também pode operar tais transformações, bastando-lhe ter percepção acima do comum e valores que colocam o bem-estar do semelhante acima de qualquer outro interesse.
O artigo de Milton Hatoum dá excelente testemunho disso, quando se refere à criação do Hospital de Medicina Tropical de Manaus, antes uma simples e apertada sala, destinada a servir de lavanderia ao Hospital Universitário Getúlio Vargas, na capital amazonense. Quanto basta, para justificar o atual nome daquela dependência científica, onde o Grande Amazônida Heitor Vieira Dourado passou a maior parte de sua vida profissional, antes de voltar à terra de nascimento, Belém do Pará.
Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado é o nome do conjunto de prédios a que acorrem os afetados por alguma das muitas moléstias tropicais que o patrono sempre se esforçou por compreender e combater. Desde os primeiros tempos, já especializado em Malariologia, na Universidade de São Paulo - USP, até 1988, em uma das salas Dourado dirigia sua equipe e atendia pacientes. Quando não estava nas salas de aula, de lá e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Amazonas, ou em laboratórios que ele mesmo criou e fez serem equipados.
Os menos informados sobre Dourado talvez não saibam quanto sua mente e seus sonhos eram maiores que a Amazônia da qual ele se tornou uma das grandes personalidades. Mas é inegável que sua passagem, criança e jovem, por outras unidades da Federação, conferiu-lhe certa consciência de fronteiras diferente da encontrada na maioria das pessoas. Na capital cearense, ou no interior do Rio Grande do Sul, ele pôs sua sensibilidade a serviço da captação do que o ser humano tem de universal. E fez de si mesmo uma pessoa espiritualmente ubíqua. Onde quer estivesse um ser humano, lá ele punha seu interesse. Onde quer se apresentasse um portador de doença - e não só as enfermidades tropicais -, podia-se contar com o denodado e profundo combatente. Sem cobrar um só centavo, porque - é Hatoum quem o diz de novo: Heitor Dourado foi um dos tantos brasileiros sonhadores, um idealista que encarava sua profissão como um sacerdócio, ou como uma missão social inadiável, urgente.
Certo que a vida pública é exigente de pessoas como Dourado. E as atrai, se elas trazem consigo o amor que a humanidade exige. E da qual é feita. Os que têm a felicidade de contar um pouco que seja da vida de um ser humano assim, devem contá-lo. Não pelo simples fato de que devemos reverenciar e rememorar os amigos, mas sobretudo porque há razões muito fortes para se ter contado na vida com amigos de tal quilate.
Conto, portanto, pouco do muito que sei, embora reconhecendo que muito mais muitos outros terão a contar. Por exemplo, dos muitos meses em que o amigo contribuiu para a manutenção de consultório em um dos edifícios do centro da cidade. Enquanto os demais colegas frequentavam a pequena sala por todos mantido, não sei de uma só vez em que Dourado tenha ido lá. Asseguro, porém, que jamais ele deixou de pagar a cota que lhe cabia.
Seria fácil para qualquer outro sócio simplesmente retirar-se do grupo. Fácil para os que colocam os bens materiais, especialmente o dinheiro, acima de qualquer outra consideração ou avaliação valorativa. Não era o caso do Agadê. Ele sabia que sua retirada ou sua omissão poderia resultar na impossibilidade de os outros colegas e amigos clinicarem. Como os colegas eram profissionais em que ele acreditava e para os quais previa futuro próspero no exercício da Medicina, que seus bolsos se abrissem e viabilizassem a continuidade do aprendizado dos outros médicos. Talvez fosse diferente, se nenhuma vocação para o magistério estivesse presente naquele médico formado na turma de 1963 da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará.
Alguém poderá objetar que um só exemplo não ajuda a firmar a impressão sobre um ser humano. Dou outro, e mais daria, se me fosse exigido. Temo faltar-me espaço.
Convidado por mim para ocupar importante cargo médico em uma instituição pública, a pedido do chefe desta, Agadê transferiu o convite para um amigo amazonense mal chegado a Manaus, de volta do Rio de Janeiro, onde foi buscar o diploma de médico. Preciso e fulminante em seus argumentos, ele me disse: consegue do teu amigo a nomeação dele, porque eu tenho emprego e ele não tem nenhum.
Para quem mantinha com ele convívio fraterno vindo dos tempos de militância na política universitária do Pará, não havia nenhuma novidade na reação. Afinal, foram inúmeras as vezes em que o vi recusar um cafezinho, nas longas reuniões que entravam pela madrugada, nas praças de Belém, a da República especialmente. Os últimos centavos que lhe restavam na carteira haviam sido entregues a grupos de residentes na Casa do Universitário. O almoço dos colegas estava assegurado. O cafezinho do presidente da União Acadêmica Paraense tinha que ser pago por outro.
Professor dos mais respeitados, aqui e em Belém por seu pertencimento às universidades federais, era ele também renomado e reverenciado pesquisador, reconhecido internacionalmente. Essa a circunstância que o fez superar tentativa do Ministério de Educação, de excluí-lo do quadro docente da Universidade Federal do Amazonas, como relatado em obra lançada em 20121.
Naquela oportunidade, reação surgida no seio de algumas organizações científicas e acadêmicas internacionais impediu a efetivação da injustiça. Relevante lembrar a ativa participação do então reitor da Universidade de Brasília - UnB, em que pese a divergência política com o perseguido cientista. Essa qualidade, a excelência do trabalho que desenvolvia, a respeitabilidade e a liderança granjeadas na comunidade acadêmica não permitiram titubeio. Em nome delas, o professor Cury atraiu a resistência de instituições internacionais. Dourado passou incólume por mais esse esgar autoritário.
E lá está, no currículo do Agadê, a prova de sua dedicação sempre honesta e criteriosa, determinada e comprometida, com a melhoria das condições de saúde e vida das populações com as quais manteve contato.
Basta mencionar que, transferido para uma cidade do interior do Ceará, após a aposentadoria, logo se tornou influente liderança comunitária. Isso rendeu histórias edificantes e desconcertantes, sendo protagonistas os amigos mais chegados.
Em uma delas, o encontro para conversa que se tornaria líquida pela ingestão de cerveja teve que ser retardado. Algumas horas eram necessárias ao atendimento de pacientes que já faziam fila em frente ao pequeno ambulatório que o dono da Pousada Refúgio Dourado construíra. Eram pessoas do povo, raramente visitadas por um ginecologista. No hotel, o proprietário manifestava-se diferente de um empresário, porque médico é o que era no mais fundo do seu ser. A salinha, se não era a ideal, nem igual a tantas de que ele dotou o Hospital de Doenças Tropicais de Manaus, prestava-se ao exame dos enfermos.
Noutra, novo adiamento. Os interessados em produzir e vender artesanato a uma das visitantes e sua empresa de perfumaria foram convocados para reunião em que se estabeleceriam as formas de cooperação.
Mesmo afastado da vida da cidade, nosso homenageado continuava a pesquisar e participar de eventos em que se discutiam os problemas de sua área específica e, com quase igual frequência, de outras áreas do conhecimento. Sempre que se tratasse de algum assunto ou problema diretamente ligado à vida dos cidadãos, podia-se sempre contar com Heitor Vieira Dourado.
Feito Presidente do Conselho Curador da Fundação Djalma Batista (depois chamada Fundação Amazônia de Defesa da Biosfera), sempre FDB, o professor Heitor Vieira Dourado responde pelo enorme impulso que a entidade experimentou. De 2004 a 2010, o reencontro com ex-alunos, ex-colegas (todos seus reverentes admiradores), ele participou ativamente da comunidade científica de que se havia afastado em 1988. Como a atestar que o afastamento era apenas geográfico, Dourado era recebido com a naturalidade e a efusão - e a sincera alegria, não se esqueça, para não mentir - com que se recebem os mais íntimos, os mais queridos, os mais respeitados também.
Quando desabou sobre nós a infausta notícia, mal podíamos aceitar sua verossimilhança. Fazia pouco tempo, o Presidente do Conselho Curador da FDB estivera conosco. Conosco discutira os percalços por que vem passando a ciência no País. Na presidência da sessão que o trouxera até Manaus, reiterou sua preocupação com os destinos da produção científica. Conduziu os trabalhos com a leveza habitual, aquela dos que sabem mais do que conhecem. Dos que buscam no conhecimento não apenas informar-se dos acontecimentos, dos fenômenos e das relações entre eles e entre as pessoas, também.
Talvez - se ainda há margem para dúvida - dessa sua forma de ver o mundo e as gentes que o habitam, a natureza de que todos procedemos e de que fazemos parte, a diferença entre conhecer e saber, Dourado permanece como um Grande Amazônida. Como se a Amazônia ocupasse todo o universo. Porque Heitor Vieira Dourado foi, sobretudo, um homem universal. O conhecimento que ele detinha não conhecia fronteiras. E a disposição com que se entregava à boa luta, muito menos.
Espíritos assim é que se fazem imortais.