Não me perguntem por quê. Mas ao concluir a leitura de Famigerado, um dos contos de Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, vieram-me à memória personagens de conhecida e festejada peça teatral de Ariano Suassuna. Refiro-me a Chicó e João Grilo, que conheci quando era um adolescente, no teatro do Colégio Marista de Nazaré, em Belém do Pará. Então, os atores Sélton Mello e Matheus Nachtergaele talvez ainda nem tivessem nascido/ muito menos o filme por eles protagonizado fora produzido.
Não é muito difícil atinar com a razão pela qual cheguei a estabelecer essa proximidade entre as duas obras – o conto do genial diplomata e médico nascido em Cordisburgo, MG, e a peça produzida por uma das figuras mais representativas do talento nacional, o paraibano Ariano Suassuna.
A saída encontrada pelo narrador de Famigerado, a meu ver assemelhou-se muito às saídas que Chicó e João Grilo encontravam, sempre que postos em xeque ou envolvidos nas muitas trapalhadas que a peça põe em cena. A sagacidade e o cinismo de Chicó e a perfídia sonsa de João Grilo estão presentes no narrador do conto de Guimarães Rosa, como espero fique ressaltado, mais à frente desta nossa conversa.
Fica aqui apenas esse registro, porque minha intenção é revelar a impressão que me ficou, após lido mais esse dos inumeráveis e belos contos de Rosa.
Diferente de outro conto, de que me ocupei, em outra sessão do evento em que se inclui esta mesa (Sorôco, sua mãe e sua filha”), não lemos história que contenha a menor dose de fantasia. Ao contrário, Famigerado traz um relato a que qualquer um de nos se sujeita. Nela o foco está em contrapor a braveza e a valentia de um dos protagonistas, e sua ignorância, que acaba por motivadora dose de curiosidade. Braveza e ignorância era, além da arma de fogo, o que Damázio levava sobre seu cavalo.
Porque tenha sido chamado pelo adjetivo que dá nome ao conto, Damázio pôs-se em campo, até encontrar resposta para sua dúvida. Não lhe movera mais que a intenção de perguntar o significado daquela palavra que ele jamais ouvira antes lá
e por estes meios de caminho, tem nenhum ciente, nem têm o legítimo – o livro que aprende as palavras...
Já essa forma de apelidar o dicionário bastaria para desatar frouxos de riso. O livro que aprende as palavras...veja-se só!
A palavra que tanto incomodava o jagunço foi-lhe explicada – e de que surpreendente forma! – somente após verdadeiro cerimonial de, digamos assim, sedução.
Tentarei explicar como e porque cheguei a esta conclusão.
Damázio e três outros cavaleiros aproximaram-se da casa do interlocutor do jagunço conhecido por suas estórias de ferocidade com dezenas de carregadas mortes, face à descrença do homem dos Siqueiras, sem que o padre do lugar tivesse algo a lhe dizer. Até porque a curiosidade do homem não bastou para aproxima-lo do sacerdote do lugar.
...com padres não me dou, eles logo engambelam – disse Damázio.
Imagine-se, agora, o medo que qualquer um sentiria, diante da aproximação de alguém tão famoso por sua ferocidade. A atenção à narrativa o autoriza dizer. Ainda mais se o narrador pudesse contar o número exato de mortes provocadas pelo instinto damaziano! Não podendo conta-las, possivelmente ampliava-se o medo. Os temores que a dúvida suscita...
Mas o homem letrado, ouvinte antes apavorado, assustado ao constatar a arma presa no coldre de seu interlocutor, pagava seu pedaço por essa ignorância. Se Damázio ignorava o que quer dizer famigerado, o outro ignorava o verdadeiro propósito do visitante. Não bastasse terem ficado, arredios, os seus três acompanhantes...
Pior, nada menos que magnificar o medo do visitado. Para isso serviria a arma,
...no cinturão, que usado baixo, para ela
estar-se já ao nível justo, ademão, tanto
que ele se persistia de braço direito pendido
pronto meneável.
O jagunço chegava pleno de ignorância, desconfiança, mágoa (e se o termo usado pelo oficial público fosse uma ofensa?) e, mais que tudo, curiosidade. O narrador, ao medo a que não se furtaria qualquer de nós, diante de tão ameaçador contato, acrescentava a ignorância sobre qual seria seu destino, ocorresse ele de esclarecer o sentido exato da palavra mal ouvida. Ou tivesse o vocábulo o sentido que o desconfiado cavaleiro imaginava.
Famigerado é inóxio, é célebre, notório, notável.
O esclarecimento provocou mais escuridão. Mas o narrador como se impôs ao homem conhecido pela violência. Aumentada a ignorância do jagunço, veio daí a indagação quase humilde do visitante curioso:
Vosmicê mal não veja em minha grossaria no não-entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
Nesse ponto, o narrador já tinha submissa à sua sabedoria qualquer intenção malévola de Damázio. Poderia até alimentar a certeza de não ser arrolado, logo após, à grei dos que padeceram sob o instinto do jagunço. Pode, então, dizer, desenvolto e seguro:
Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos.
Mais confortável sentiu-se o letrado, quando o perguntador, a esta altura tocado de inusitada (quem sabe inédita!) docilidade, pediu:
Pois...e o que é que é, em fala de pobre, linguagem em dia de semana?
À moda de Chicó e João Grilo, o que teria dito o antes apavorado narrador, se não o que ele disse, para agrado do consulente?
Nada mais, nada menos que:
Famigerado? Bem. É importante, que merece louvor, respeito...
Era preciso confirmar, porque os ouvidos de Damázio precisavam ouvir mais uma vez aquela resposta que tanto removeria suas dúvidas, mesmo sem eliminar totalmente sua ignorância:
Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?
O espírito de Chicó e de João Grilo estava ali, de corpo presente. E disse:
Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora desta ser é famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!...
Os pés no estribo da montaria, o cavaleiro posto fora de dúvidas rendeu homenagens aos que sabem o que as palavras dizem. Ou imaginam saber...
Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída.
E concluiu:
A gente tem cada cisma boba, dessas desconfianças...
Eu pensava ter concluído o texto até agora lido. Para não fugir a certa prática que tenho desenvolvido nos últimos anos, lembrei que desta vez não havia consultado o “pai dos burros”. livro que aprende as palavras e que o famigerado Damázio tentara ler, sem nada entender.
Penitenciei-me: busquei no Aurélio[1]o registro do vocábulo que dá título ao conto. Era uma auto-exigência a que não poderia fugir.
Como falar da qualidade atribuída pelo agente público a um matador famoso, sem sequer ter recorrido ao livro que aprende as palavras? Isso foi o que disse Damázio.
À página 609 do Aurélio, se lê:
Famigerado: Que tem fama; muito notável; célebre; famoso; famígero.
Os exemplos do uso da palavra, com o significado acima explícito, mencionam Latino Coelho (ao qualificar o autor de La historia del ingenioso fidalgo Dom Quixote de la Mancha:“famigerado romancista, Cervantes”); Camilo Castelo Branco (ao mencionar os “padres de muito saber, uns famigerados na oratória”) e Franklin Távora (“...que entre os malfeitores ...se achava o famigerado bandido”, em seu romance O Cabeleira).[2]
Não falta, no dicionário a indicação de que, nos dois primeiros exemplos, o vocábulo é aplicado em sentido diferente do que lhe é dado no terceiro. A conclusão justifica eu não ter apagado tudo quanto antes escrevera para lhes dizer
(...a palavra não se aplica só a malfeitores, embora no uso comum se observe tendência para isso).
Eu, que pensara ter concluído meu comentário sobre o interessante conto de Rosa, senti-me diante de um novo desafio. Não mais o de analisar o conteúdo dele, mas de seguir outra vereda, a saber: a riqueza linguística do português falado no Brasil e a contribuição do autor de Grande sertão: veredas para a língua.
A compreensão que eu tinha do termo em questão restringia-se ao uso comum, a tendência apontada pelo dicionarista, para fechar o verbete dicionarizado. Assim, famigerado também teria a ver com o crime, a violência de seu cometimento, a má índole do que o perpetra.
Lembrei-me, então, de jamais ter encontrado, até aquela noite em que tive conhecimento das menções de Latino Coelho e Camilo Castelo Branco, outro significado para Minha compreensão estava limitada ao conceito inscrito no romance de Franklin Távora. Jamais lera ou ouvira falar de um famigerado médico ou de um famigerado pintor. Nem encontrei ainda nada semelhante. Várias vezes, e com frequência, leio ou ouço falar um famigerado assassino.
Desfeito o equívoco e superada essa pobreza de minha compreensão, novo problema assaltou-me: qual dos sentidos Guimarães Rosa pôs na boca do narrador: a que permite o largo uso do vocábulo ou sua restrição ao universo dos criminosos? Qual o dicionário em que se louvou Guimarães, para escrever o conto ora comentado? Desejou ele, conhecendo todas as conotações do termo, trazer ao seu conto mais um elemento perturbador, qual seja o de pôr o leitor em dúvida? Ou tentou nos revelar quão rica é a língua portuguesa falada no Brasil? Ou, ainda, quanto o conhecimento da língua e a riqueza do vocabulário do narrador podem alterar as intenções do interlocutor?
O fato é que, respondendo a Damázio como respondeu, o narrador ofereceu-lhe o conceito menos hostil, agradável até, tornando aquele homem de má fama uma pessoa agradecida, penhorada mais pela dúvida desfeita que pela sensação de carregar consigo um alívio para a ofensa que julgara ter recebido.
Tornar o narrador uma espécie de mistura de Chicó e João Grilo, portanto, não agrediria o autor do conto. Antes, traria até nós, seus leitores, o extraordinário conhecimento que ele tinha de nossa língua e de seu uso – o erudito e o vulgar.
Espero que a vocês também agrade este conto de Guimarães Rosa. Espero, mesmo, que alguns dos leitores acabem por dividir comigo a impressão de que perdemos muito por jamais ter ouvido um diálogo entre o autor de Grande Sertão: Veredas e o simpático paraibano que criou O Auto da Compadecida.
Manaus, 01 de abril de 2019. Nem por ser o dia da mentira...
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* Apresentado no Seminário comemorativo do Dia Mundial do Livro, promovido pela Fundação Cultural de Manaus- ManausCult, abril-2019.