Faz poucos dias, uma mulher foi morta no Município de Presidente Figueiredo. Venezuelana, palhaça, a vítima percorria a América do Sul, montada em uma bicicleta. Fazia oito anos, morava em Manaus. Presumo tratar-se de uma artista de rua como as muitas que angariam alguns trocados com os quais possam sobreviver, embaixo dos semáforos das esquinas de Manaus. Trabalhando no que sabia fazer e sobrevivendo com dignidade. Chamava-se Julieta (Hernandéz Martinéz). Tinha 38 anos. Só não teve um romeu capaz de defendê-la, embora nenhum mal fizesse aos que abordava, na sofrida luta pela sobrevivência. Que acabou perdendo. Mais que simples e escondida notícia de página policiai, o drama dessa Julieta violentada é um retrato. Retrato de uma realidade sórdida, ardida, impudica. Talvez a xenofobia de alguns espécimes que se dizem semelhantes a ela tenha a ver com o drama de Julieta. Sem Verona. Sem outros verões. Vida agora sem sol. Não sou o único que ouviu e continua ouvindo palavras insultuosas, agressivas, desumanas, quando os xenófobos dirigem seus preconceitos àqueles venezuelanos ou haitianos que aqui encontraram abrigo e solidariedade. Nossos irmãos originários também sabem do que trato. É menor a população dos que fazem do preconceito uma regra pétrea de vida. Não basta, porém, sabê-los poucos. Importa reconhecer que eles existem. Um só que houvesse, não a multidão em que já se constituem, seria o suficiente para alimentar e alimentar-se do ódio que deu de ser nossa companheira. A tal ponto que a morte da palhaça só conta nos registros policiais. E no lamento e choro das pessoas que ainda guardam dentro de si um coração. E têm na cabeça a solidariedade e o que ainda pode restar da condição humana. Desafinados todos eles, talvez. Mas certos de que no peito de um desafinado ainda bate um coração. Pelas tantas julietas e marias. E Maryelles. Pelos que, capazes de levar a alegria aos seus contemporâneos, sentem-se diminuídos, quando a Vida desprezível de uns sacrifica a Vida construtiva e alegre de tantos.
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Professor Seráfico - 2 de jan.
- 2 min de leitura
Iniciei, junto com o Ano de 2024, a leitura de livros sobre a economia. Do Pais, da Amazônia e do Amazonas. O engenheiro e ex-Secretário de Estado de Desenvolvimento dessa unidade da Federação, Samuel Hannan é o autor dos quatro livros que prometo fazer percurso dos meus olhos, nos dias que seguem. Um deles leva também a assinatura de seu filho David. O que me entrar pelos olhos, estou certo, levará à minha mente inquieta muito conhecimento, como imensurável elenco de novas dúvidas. Para isso serve a mente humana. É o que me tem ocupado, desde que conhecidas as sete operações fundamentais da Matemática e aberta a enorme porta da alfabetização. Nesse caso, processo autodidático frequentemente repetido. A ponto de induzir leitores, alunos, até algumas pessoas amigas ao equívoco de me qualificar inadequada e injustamente. Bacharel em Direito e advogado, frequentemente sou tido por economista. Aqui, a conclusão de um curso promovido pela Comissão Econômica para a América Latina- CEPAL terá fornecido o pretexto para a qualificação inadequada. Talvez por que depois de 52 anos, ainda retenho muito do que aprendi ali, conteúdo a que acrescentei permanente interesse pelo respectivo campo de estudos. A consideração dada aos sociólogos me é estendida, creio, pelo fato de que não canso de afirmar o caráter gregário do descendente do pitecanthropus erectus, e dos compromissos que isso acarreta para os integrantes de uma sociedade. Todos, em qualquer sociedade. Jornalista sou tido pelos que me viram um dia que se tornou período maior que 20 anos, editorialista do principal jornal diário de Manaus. Além de, no já esquecido período 1961-1964, ter passado pela redação de um diário de Belém, Pará. Administrador foi-me rótulo imputado, em razão do exercício efetivo do magistério em curso específico de formação de bacharéis da Administração. Além disso, toda uma longa trajetória como gestor de organizações públicas e privadas. Nada desse reiterado equívoco equivale à conquista de um diploma. A compensação que um pedaço de papel impresso não contém, recebo-a da consideração dos meus contemporâneos, a cada texto ou livro publicado, a cada palestra proferida, a toda entrevista concedida. É o que me basta. Pelo menos por enquanto, mal começada a instigante viagem que a leitura proporciona. Aos que sabem ler para muito além do que se expressa em tinta sobre o papel...
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Professor Seráfico - 30 de set. de 2023
- 5 min de leitura
Por mais absurdo que possa parecer, o golpe tentado e frustrado em 08 de janeiro de 2023 nasceu há pelo menos três décadas. Quase quarenta anos, na verdade. Essa é hipótese que não pode ser descartada, sob pena de tornar mais difícil – se não impossível – prevenir novas tentativas de fragilizar e, afinal, matar nossa incipiente e hesitante democracia. Não precisamos sequer lembrar a divisão de nossas forças armadas, quando o general-ditador Ernesto Geisel se viu forçado a cortar na própria carne. Refiro-me à destituição do general Ednardo d’Ávila Melo (Comandante do II Exército, SP, 1976) e à derrubada do mais notório golpista, general Sylvio Frota, Ministro da Guerra, em 1977. A morte do sindicalista Manoel Fiel Filho, em circunstâncias semelhantes às do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-CODI levou à exoneração do general Frota, como a de Herzog havia levado à destituição do Comandante do II Exército. Menos porque Geisel fosse plenamente hostil aos métodos dos torturadores, como ilustra sua expressão. A tortura é dispensável, a não ser em certos casos. Atribui-se ao general Geisel tal afirmativa, tomada em seu significado, sem que aqui esteja em sua literalidade. Mas Frota discordava de Geisel e desejava candidatar-se à sua sucessão. Era a linha dura manifestando-se contra a distensão que tinha em Golbery Couto e Silva o inspirador. Ambos os acontecimentos (as duas exonerações) são, talvez, o ninho em que se instalaram e alimentaram os sonhos dos inimigos da democracia. Lá pode ter começado o processo que culminou com a mais agressiva e ostensiva conduta antidemocrática posta a nu no início do governo do atual Presidente. Tal processo inclui, dentre outros atos e fatos a que nem todos os observadores e analistas deram atenção, a reiterada louvação da tortura e o encômio aos torturadores;
a campanha do ex-capitão contra as urnas eletrônicas; o desejo de matar pelo menos 30.000 brasileiros; a promessa de eliminar a “petralhada”; a invasão da sede da Polícia Federal; a movimentação de tanques e tropas em 7 de setembro de 2022; as agressões e ameaças ao STF; a tentativa de explodir o aeroporto de Brasília e – clímax desse trajeto, o ataque terrorista à sede dos poderes constituídos. É possível que observadores mais atentos incluam vários outros momentos e atos nesse processo que levaria ao retorno do autoritarismo. Não se pode descurar, segundo meu juízo, dos fatos de que foi protagonista, ainda na década dos 1980, o ex-capitão excluído das forças armadas e depois tornado inelegível. Nem o ambiente internacional, desenhado segundo o crescimento dos movimentos conservadores e direitistas em vários países, em distintos continentes.
O destaque alcançado pelo ex-capitão, se não corresponde a virtudes cuja ausência Geisel mencionou (militar indisciplinado, dizia dele o superior hierárquico), pode ser atribuído à oportunidade que alguns camaradas viram de chegar ao poder. Para isso, precisariam de alguém disposto a pôr em risco sua própria vida. Pelo menos, a dar algum crédito às reiteradas ameaças, covardia à parte, como o episódio do assalto que o fez perder a arma que portava, quando assaltado. Os golpistas viram nele o perfeito executor do golpe. Mesmo se para tanto os outros tivessem que aproveitar episódio nada dignificante para as forças de que todos faziam parte. Assim, podem-se incluir nesse processo as acusações contra o colega que tentou explodir quartéis e outros pontos estratégicos da cidade do Rio de Janeiro (inclusive a usina de bombeamento de água para abastecimento da população) e sua consequente exclusão do Exército. Esta, já se sabe, em condições muito mais próximas da premiação, que da punição. Pois não pode ser outro o juízo que se faça dos atos e suas consequências, quando o acusado é mandado embora com uma promoção e a garantia de receber os soldos correspondentes. Isso não aconteceria, é a hipótese, se ele não fosse visto como capaz de cumprir a trajetória que o fez Presidente da República. No posto, seria ele o responsável pelo retrocesso desejado por boa parte dos “ex”-camaradas. Ao invés de tê-lo distante das tropas e impedir sua aproximação de outros segmentos e organizações sociais (polícias federal, militar e civil, milícias e outras organizações), estimular seu ingresso na disputa eleitoral seria caminho desejável. Isso resultou na eleição municipal do camarada excluído, pelo Partido Democrata Cristão, no Rio de Janeiro, em 1988. Aí começou a segunda parte da trajetória política, desta vez acrescida da participação eleitoral. A primeira parte contém os artigos publicados na revista Veja, no tom e conteúdo próprios dos sindicalistas. Suas opiniões e a defesa de melhor remuneração, sobretudo aos graduados (de soldados a sub-oficiais) atraiu a atenção dos segmentos inferiores da hierarquia militar. Mais tarde, a revelação de sua participação em plano terrorista que impactaria sobre a população da ex-capital federal manteve-o em evidência. Talvez o marco simbólico de que, ele sim, poderia levar à concretização do sonho dos autoritários da caserna.
Porque restassem em atividade muitos dos que participavam das ideias e das convicções de Frota e Ednardo (para ficar nesses dois, pela notoriedade), é de admitir que ao projeto por eles acalentado aproveitasse a emergência do camarada excluído. Fazerem-no porta-voz e defensor dos valores comuns talvez pudesse levá-los ao objetivo havia tanto tempo alimentado.
Se faltasse substância à hipótese acima descrita, não faltariam registros históricos a revelar certa simpatia pela ruptura institucional cuja origem teve a caserna como berçário e ninho. Mesmo a Proclamação da República é a expressão desse sonho. Ainda que muitos dos republicanos de 1889 jurassem fidelidade ao imperador, até a véspera. Depois disso, certa tentativa bizarra, pois quem a deixou à mostra se chamava Jurandyr Bizarria Mamede, um coronel do Exército, não obteve êxito porque outro de seus colegas, chamado Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott o impediu. Lott não tinha simpatia pela esquerda, mas graças a seu apego às instituições, frustrou o golpe que evitaria a posse de Juscelino Kubitscheck de Oliveira na Presidência da República. Estávamos em 1955, vencida pela aliança PSD/PTB a eleição de outubro do ano anterior. Arranjos de Café Filho, o sucessor de Getúlio Vargas e o Presidente da Câmara, Deputado Carlos Luz provocaram a intervenção do marechal Lott, que garantiu a entrega da Presidência ao Presidente do Senado, Nereu Ramos.
Juscelino, para quem não sabe, enfrentou duas sedições cujo ovo fora chocado sobretudo na Aeronáutica. O major aviador Haroldo Veloso liderou o movimento de Aragarças e, com o capitão José Chaves Lameirão, o de Jacareacanga. Ambos foram contestados e reprimidos, inclusive pelo antigo fomentador de rupturas institucionais, o brilhante jornalista Carlos Werneck de Lacerda, chamado pelos adversários “o corvo”.
Neste caso, pode-se observar a distância entre os mentores, os de ontem e os de hoje. Na tentativa de Bizarria Mamede, o voo de um abutre; agora, os gritos de ratazana saída dos esgotos.
Em síntese: a tentativa golpista que em 8 de janeiro de 2023 chegou às ruas registrou seu nascimento nos cartórios do início da segunda metade do século XX e o teve ratificado na oitava década desse século, com o pacto não-escrito(?) que embalou a aventura e se aproveitou de um desastrado e canhestro aventureiro. Esta a hipótese que sugeriria aos historiadores explorar. __________________________________________________________________________________
* Os leitores que desejarem mais profunda e extensa apreciação do período do Segundo Império até a promulgação da Constituição de 1988 poderão encontrá-la em A vontade de potência, de Orlando Sampaio Silva, colaborador deste blog. A obra, de 2012, foi editada ela Chiado Editora, de Lisboa, Portugal.
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