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Muito do que se conhece dos povos mais antigos é devido à tradição oral e a outras formas de registro da realidade de então. Avulta nesse acúmulo e transmissão de conhecimentos a obra de escritores, filósofos e poetas, todos dando conta do Mundo/mundo, como por eles percebido. Na mitologia encontramos fonte importante desse processo, não obstante o esforço de muitos por negar-lhe papel fundamental na (re)construção do passado. Menos para mantê-lo, mas para tomá-lo como indispensável à apreensão do Mundo/mundo tal como ele é e se vai alterando. Há, portanto, em todos os tempos, seja através das inscrições rupestres, seja com o uso da oralidade, seja ainda com o uso do alfabeto, narrativas produzidas por observadores, ontem como hoje. Daí vem minha objeção ao tom pejorativo com que a expressão narrativa vem sendo tratada. Não é o fato de narrar determinado acontecimento, situação ou decisão que compromete a veracidade e o conhecimento adequado e necessário. A sabedoria, costuma-se dizer, é fruto da própria vida. Quanto mais prolongada, maior a probabilidade de acumular conhecimento, com o que, em tese, aumentaria a sabedoria dos indivíduos. Estes, porém, desde os mais remotos tempos são observadores aos quais não faltam crenças próprias, experiências e relações influentes em sua maneira de perceber os fatos. Seja para defender-se de ameaças reais ou imaginadas, seja para aproveitar oportunidades. Oportunidades, aqui, são determinantes das escolhas e das ações que as sucedem, ao sabor dos valores vigentes em cada época. Tais valores também se vão alterando, não sendo raro o processo de distorção pelo qual passam, ao longo do tempo. Dizia-se muito ser o tempo senhor da razão. Observação atenta inconforma-se com tal afirmativa, seja pelos valores subjacentes às narrativas produzidas por alguns narradores, cada qual tendo sua maneira própria de interpretar os acontecimentos que lhes foi dado observar. Há, então, narrativas adequadas e outras, mais ou menos distantes da realidade. O que chama a atenção, agora, é a forma como certos responsáveis pela administração pública preferem, eles mesmos, produzir narrativas enganosas, das quais resultam imagens nada reveladoras da veracidade de que essas narrativas andam distantes. Refiro-me, em especial, a Manaus e à contradição de que ela é vítima. às vezes, vítima fatal. O desabamento de uma casa, em bairro da periferia da capital amazonense, matou pelo menos oito pessoas (outros falam de dez vítimas fatais). Desprovidas de meios que lhes garantam a satisfação de uma necessidade primária, a habitação, e direito constitucionalmente protegido, não são poucas as famílias expostas ao mesmo risco. No entanto, confrontadas a situação que levou ao desabamento e as informações fornecidas pelo Prefeito da cidade, não se tratou de mero acidente. As autoridades tinham plena ciência (consciência seria desarrazoado dizer) da situação e dos riscos nela envolvidos. Se nada fizeram para removê-los, no mínimo lhes cabe a culpa por nada terem feito. Nesse caso, há duas narrativas. Uma, por inverídica, não desmerece o nome, mas a torna falsa - a farta propaganda que desenha e apresenta aos leitores, telespectadores e audiência, uma cidade-Paraíso. Outra, também narrativa, mostrando os corpos das vítimas e o sofrimento de suas famílias. Usar o termo narrativa como algo sempre negativo apenas representa o negativismo que tenta remeter-nos ao passado e à barbárie.

 
 
 

Imagino-me general reformado, cuja atividade principal é ler os jornalões, quando não estou frente à televisão, clicando nervosamente o teclado do controle remoto. Entre uma espiada mais demorada e outra na tela, tomo um pouco de chá gelado, que o calor está brabo. Às vezes, vou até a janela e olho pro marzão bonito, aquele azul agitado, coberto pelo azul mais calmo. Talvez a busca da explicação que estou certo de não encontrar. A dúvida é grande, porém. Só por isso, apego-me a ela como a craca não abandona o barco. Não era isso o que eu esperava ver, depois de quase quarenta anos de convivência com meus heróis, alguns até considerados super. O que marcava sua presença entre os demais eram os exemplos dados a todo momento. Levavam ao extremo o compromisso com o que chamavam pátria. Não se deixavam atrair pelos sedutores chamados a corromper-se. Todos viamos neles modelos dignos de ser seguidos. À medida que eu conquistava uma posição superior, mais forte ficava o sentimento de orgulho ostentado desde que atravessei pela primeira vez o portão das armas. Agora, o noticiário traz pra dentro da minha casa o avesso. Essa a causa do zapear nervoso que me ocupa quase todo o dia. O que era orgulho virou vergonha. Meus quase-ídolos tinham pés de barro. E o barro de que eram feitos desmancham-se ao menor pingo de chuva, se nesse pingo vem a promessa de um ganho fácil. Ainda mais, desonesto.

 
 
 

Grande parte do que o ser dito humano faz, antes passa por sua cabeça. A percepção do que há à sua volta, seres como ele, outros animais ou coisas inanimadas vão deixando suas marcas, em processo consciente quanto inconsciente. Mesmo sem se dar conta dessas peculiaridades que penso corresponderem ao bípede inteligente (afora os que não o são), cada indivíduo acaba por ser resultado dessa experiência que se chama Vida. No cérebro (e quase todos o têm), então, depositam-se os recursos de que se valem os descendentes do pithecantropus erectus para desfrutar da extraordinária do percurso entre o primeiro vagido e o decúbito dorsal definitivo. Reflexões, decisões e ações humanas, portanto, vêm todas carregadas desses armazéns de percepção, imagéticas muitas delas; imaginárias, em boa parte. Para os que apreciam a educação e por isso festejam os que a tornam algo tão necessário e atraente na percepção dos fenômenos, sejam físicos ou sociais, a figura de educadores respeitáveis e dedicados merece reverência generalizada. Assim acontece com Paulo Freire, cuja contribuição à educação brasileira conquista ainda hoje o reconhecimento e a gratidão da população de muitos países. Em especial, naqueles em que Paulo deixou sua marca. Não a marca dos que não lhes oferecem peixes, porque preferem torna-los pescadores, mas a marca dos que tornam a educação uma forma de apreender o mundo e fazer desse exercício um permanente desafio. Nele, o encontro das respostas que a sobrevivência requer. E a busca da realização de sonhos, também. Outros, porém, desdenham do sonho, da Vida, no que ela tem de mais rica e desafiadora. Os medíocres, incapazes de sonhar e, em consequência, tornarem-se pessoas, como o diria Carl Rogers. Um deles, agora feito governador do Estado mais rico do Brasil. A personalidade daquela autoridade nunca se mostrou tão transparente quanto agora. Di-lo a troca do nome dado a uma das linhas do metrô da capital paulista, antes chamada Paulo Freire. A partir do Palácio dos Bandeirantes (nome em si ofensivo às vítimas de chacinas em séculos passados) e por iniciativa de seu principal ocupante, o nome do educador pernambucano será tirado. No lugar, virá o de Fernão Dias, cuja memória os povos ancestrais e os negros não descolam da exploração e das violências de que foram vítimas.

 
 
 
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