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Os Mapuche e o Raposo que toca txutxuka


José Ribamar Bessa Freire

“La littérature orale comprend ce qui, pour le peuple qui ne lit pas, remplace les productions literáires”. (Paul Sébillot. 1881).  

No Seminário de Educação Artística realizado em Temuco, sul do Chile, em setembro de 2023, comparei projetos de literatura oral de três países da América dita latina: Narrativas Gráficas do Brasil, Territórios Narrados da Colômbia e Cuentos Pintados do Peru. Lá fiz amizade com o professor de educação básica intercultural, Ramón Cayumill, músico e contador de histórias, que agora me envia seu projeto Cuenta Cuentos Mapuche para niños y no tan niños, ilustrado com El Zorro Txutxukero, cuja versão em português tomo a liberdade de aqui reproduzir.

O povo Mapuche do sul do Chile, falante da língua Mapuzugun, conta histórias em suas escolas, usando processos próprios de aprendizagem alicerçados na literatura oral. Quem criou esta denominação foi o etnólogo bretão Paul Sébillot.

- A literatura oral – ele escreveu em 1881 - ocupa nas sociedades iletradas o lugar da literatura escrita.

De lá para cá, muita água correu debaixo da ponte, gerando amplos debates conceituais. Essa “literatura da voz” estudada depois pelo linguista suíço Paul Zumthor existia alguns milênios antes da criação do alfabeto e continua presente, com caráter universal, em todas as sociedades, mas entre os povos indígenas está marcada pela diferença de línguas e pela memória coletiva, que “guarda tudo aquilo que é narrado oralmente” na definição do romancista e filósofo romeno, Mircea Eliade.

Hoje parte da literatura oral passou a se hospedar também no registro escrito de livros didáticos usados em escolas bilingues, como é o caso dos Mapuche, que começaram a escrever o que era conservado na memória coletiva.

No entanto, “um conto oral transcrito no papel impresso é como um doente no leito de um hospital. Sobrevive. Mas é preciso retirá-lo do livro e voltar a contá-lo oralmente para que fique curado” - escreve o ator e filósofo François Vallaeys, professor da PUC-Peru. A “literatura da voz”, que sempre muda e se atualiza cada vez que é contada, não pode ficar permanentemente congelada, emoldurada, imobilizada, embora não se possa negar a importância do livro,  similar à do hospital, no salvamento de vidas e memórias.


A escrita funerária

É o que pretende o projeto de Ramón Cayumil: “fazer uso da oralidade em forma bilingue Mapuzugun e Castelhano” para retirar o relato ancestral (epew) do leito hospitalar, onde às vezes agoniza, especialmente quando a escrita guarda os ossos do som no livro, como letra morta em um caixão. Essa “escrita funerária” sepulta no túmulo narrativas que ficam lá inertes e prostradas como um doente no hospital. Trata-se de injetar sangue novo para fazê-las voltar a circular no universo da oralidade.
É o que pretende o projeto de Ramón Cayumil: “fazer uso da oralidade em forma bilingue Mapuzugun e Castelhano” para retirar o relato ancestral (epew) do leito hospitalar, onde às vezes agoniza, especialmente quando a escrita guarda os ossos do som no livro, como letra morta em um caixão. Essa “escrita funerária” sepulta no túmulo narrativas que ficam lá inertes e prostradas como um doente no hospital. Trata-se de injetar sangue novo para fazê-las voltar a circular no universo da oralidade.

A qualidade do conto oral – explica Ramón - é que nele se faz presente “o movimento corporal, a música e os sons produzidos por instrumentos mapuche”, o que permite externar sensações e emoções através da gestualidade, da expressão facial, da entonação da voz e da performance. Sua narração tem algo de espetáculo, de show. Usado para divertir e eventualmente adormecer as crianças, o conto tem o poder de despertar niños e  no-tan-niños - os jovens e adultos, além de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem.

Encenar o relato ancestral é uma forma de aproximar o público, inclusive não mapuche, ao mundo mapuche – escreve Ramón, que explica o que se aprende com tais narrativas, algumas delas com características de fábula:

- O epew é um tipo de relato oral em que se narram eventos fictícios, protagonizados geralmente por animais e pássaros, com a função de entreter e divertir, mas também com o objetivo didático de transmitir a crianças e jovens valores como a honradez, a lealdade, a retidão e a decência, entre outros.


O Raposo Txutxukero

Os saberes adquiridos através das narrativas orais podem ser apreciados no conto El Zorro Txutxukero ou o Raposo (Gürrü na língua Mapuzugun) que toca txutxuka - instrumento de sopro feito de bambu com o som parecido ao da trombeta. A versão em português traz aqui pequenas adaptações para torná-lo acessível ao leitor brasileiro. Ele é narrado assim.

Todos os pássaros da Terra de Baixo (Nag Mapu) se reuniram no centro da floresta para celebrar a vida. Subitamente surgiu, vindo lá da Terra de Cima (Wenu Mapu), um mensageiro (werken) com um convite a todos os pássaros sagrados para a festança, que se realizaria durante a lua cheia naquela outra dimensão do universo. O mensageiro falou:

- É preciso levar daqui, com vocês, um excelente músico porque, como todo mundo sabe, os músicos da Terra de Cima não tocam muito bem.

Os pássaros (üñüm), entre outros, o Manke (Condor), Kaukau (Gaivota), Triuke, Queltehue, Treille se organizaram e saíram em busca de um instrumentista excepcional. Encontraram no meio do bosque (mavida) o Raposão, exímio tocador de txutxuka e de vários instrumentos usados nos rituais:  a pifilca, uma flauta transversal e o Kultxung, instrumento musical de percussão. 

Ele foi logo convidado para comandar o som na grande festa do arromba.

Chegou, enfim, o grande dia da lua cheia. Todos os pássaros e o Raposão se reuniram numa clareira do bosque, onde o Condor orientou o musicista de rabo peludo, recomendando que tivesse um bom comportamento. Colocou-o em suas costas, levantou voo e subiu com as outras aves em direção a Wenu Mapu.


Festa na Terra de Cima

Após a longa revoada, os pássaros sagrados pousaram na Terra de Cima, descansaram da viagem e se alimentaram antes de iniciar a cerimônia. Daí, então, o Raposão começou a tocar música, o que deu origem a uma dança ritual com uma coreografia ritmada, ao som da txutxuka. No entanto, no intervalo, ele ignorou os conselhos, não cumpriu as promessas de bom comportamento, se afastou do grupo e desapareceu seguindo os passos da criatura mais linda da festa.
Após a longa revoada, os pássaros sagrados pousaram na Terra de Cima, descansaram da viagem e se alimentaram antes de iniciar a cerimônia. Daí, então, o Raposão começou a tocar música, o que deu origem a uma dança ritual com uma coreografia ritmada, ao som da txutxuka. No entanto, no intervalo, ele ignorou os conselhos, não cumpriu as promessas de bom comportamento, se afastou do grupo e desapareceu seguindo os passos da criatura mais linda da festa.

Procura daqui procura dali ninguém encontrou o tocador de txutxuka. Já à tardinha, quase escurecendo, os pássaros decidiram retornar à Terra de Baixo sem o músico. Já era noite quando o Raposão apareceu no espaço cerimonial e não encontrou mais seus amigos. Entristecido e queixoso, se lamentou e pediu ajuda para retornar à sua morada.

Foi aí que outro ser da Terra de Cima decidiu ajudá-lo. Pendurou-o em uma corda comprida, muito comprida, e foi baixando devagar. Acontece que a corda terminou muito antes de chegar à Terra de Baixo e o Raposão ficou balançando solto no ar, rodopiou, caiu pesadamente, e se espatifou no chão.

Por ali passavam duas bandurrias chilenas conhecidas no Brasil como curicaca – ave de bico longo e curvo, pescoço alaranjado e penas avermelhadas. Elas reconheceram o cadáver do Raposão e lamentaram sua morte, gostavam da música que tocava e sentiam carinho por ele. As duas conheciam as propriedades medicinais das ervas do Bosque e eram respeitadas pela capacidade que tinham de curar doentes. Decidiram ressuscitá-lo. Usaram plantas com efeitos terapêuticos, acompanhadas de muitos cantos e rezas.

Eis que, dois dias depois, o Raposão retorna à vida. Agradecido pelo milagre da cura, que deu muito trabalho, ele diz que, de acordo com o princípio da reciprocidade, iria remunerar cada uma das bandurrias pelos serviços médicos prestados. No entanto, quando as duas se descuidaram, ele se pirulitou, fugiu sem recompensá-las, descumprindo sua promessa. Os avós contadores de história dizem que as bandurrias continuam procurando no bosque o Raposão caloteiro, que até hoje continua impune, num conto com o final em aberto.


O relato oral: epew


As bandurrias poderão jamais encontrar o cadáver ressuscitado do Raposo, mas a proposta artística e cultural de Ramón certamente encontrará ouvidos e olhos atentos nos estabelecimentos educacionais e em outros espaços socioculturais para abrir uma discussão sobre a impunidade do meliante desonesto. Há muito interesse, dentro e fora do Chile, pela cosmovisão mapuche, que integra essa relação de interculturalidade.

Trata-se de levar para a escola e fora dela relatos narrados pelos mais velhos no âmbito familiar, repletos de saberes como o sistema de classificação de diferentes espécies de aves, os tipos de instrumentos musicais, as ervas medicinais (lawen) e tantos outros.

Um minitratado de ornitologia das aves da Amazônia está também no conto A sogra do Jacamim, recolhido por Barbosa Rodrigues no Rio Negro e apresentado no Seminário de Educação Artística, em Temuco.  Despertou interesse em outros intelectuais mapuche como Joel Maripil e Sara Carrasco Chicahual e especialmente em uma amiga de longa data, a bibliotecária Fresia Catrilaf, responsável pelo “hospital” que cura e faz circular contos orais.

Em um mundo trumpificado, netanyahuzado, putinizado, repleto de violência e barbárie, de guerra e desrespeito à vida, de mentiras, trapaças e fake news, a literatura oral mapuche cumpre a importante função de guardar e veicular valores humanistas e princípios éticos, concepções sobre justiça, trabalho, normas de conduta, acolhimento à diferença, tão necessários nos dias atuais. Contos, narrativas míticas, poesia, rituais, rezas e cantos defendem a vida e tratam das formas de se relacionar com a natureza e com o entorno social. 

Referências:

Ramón Cayumil Calfiqueo. Cuenta cuentos mapuche para niños y no tan niños. Puesta en escena de epew o cuentos mapuche. Nueva Imperial, comuna de la Província de Cautín. Araucania. 2025

Paul Sébillot. Littérature Oral de la Haute Bretagne. Paris. Maisonneuve. 1881.

Paul Zumthor. Literaturas da voz, in Grande atlas das literaturas. s/l: Página Editora, 2000, p.70.

José R. Bessa. O marco temporal, os mapuche e a corrida da cerca. Manaus. Diário do Amazonas-Taquiprati. 24 de setembro de 2023 e blog Taquiprati.

José R. Bessa. A sogra do Jacamin em busca da beleza. Manaus. Diário do Amazonas-Taquiprati. 12 de setembro de 2010 e blog Taquiprati.




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