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Troca de papéis

A fragilidade da democracia representativa revela-se não apenas nas tentativas de alterar a ordem constitucional sob a qual se organizam o Estado e o governo das nações ditas democráticas. As tentativas golpistas, como a que culminou, frustrada, em 08 de janeiro de 2023, são apenas consequência do processo político, eivado de vícios mais que de virtudes. Ao longo do tempo, vai-se observando o comentário jamais esquecido do chamado Senhor Diretas, deputado e Presidente da Câmara travestida de Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães: fala e critica esse Congresso quem ainda não viu o que o sucederá. Gradativamente e ao longo das sucessivas legislaturas, piora a qualidade da representação popular, enquanto o próprio processo de escolha de candidatos - para compor as listas e, depois, no sufrágio dos eleitores -, dentro de padrões em nada condizentes com uma democracia que mereça tal nome. Nem é preciso ir além da permissão do financiamento com dinheiro privado das campanhas, para mostrar a ilegitimidade do processo eleitoral. Qualquer centavo saído de cofre privado corrompe e tisna as eleições. Basta a dinheirama pública, também ela posta sob a gerência de atores privados, não estivessem os poderes republicanos em regime de permanente sequestro, capturados pelos interesses de grupos, partidos, empresas e outras formas de organização nem sempre afeitas à democracia e aos valores em que esta se fundamenta. Há, como se pode observar, um fio condutor na trajetória do desmerecimento gradativo da representação popular. A tal ponto, que a defesa de princípios insertos na Constituição é sacrificada pela desobediência a determinações que uns, usando de eufemismo e figuras de retórica, dizem cláusulas pétreas. Em meio às dificuldades de manter o orçamento da república sob o controle do Poder Executivo, este se vê forçado a ceder parte substancial dos recursos aos deputados e senadores. Com o que se inventam orçamentos secretos (!!!) e a dispensa de deveres e transparência no uso do dinheiro público. Mais que isso, busca-se fazer do salutar instituto da imunidade parlamentar um biombo que assegurará aos representantes o covil ou o esconderijo em que se protegerão, sempre - e como isso é frequente - que cometem algum crime. O que deveria guardar o deputado ou senador da vingança e da perseguição política, é visto como colete à prova das leis penais. A recusa em obedecer às determinações emanadas do Poder Judiciário, assim, passa a orientar a conduta dos membros do Poder Legislativos, como se a interpretação das Leis, a partir da chamada Maior, lhes coubesse. Um caso típico de usurpação, incompatível com a democracia e a república. Certamente, essa é matéria que deveria ser tratada durante todo o processo educativo, de baixo a alto dos níveis escolares. Não seriam escolas destinadas à doutrinação militarista os melhores ambientes para esse tipo de instrução. Enquanto as ideias aqui expostas não forem seriamente discutidas e levarem à melhor qualidade (não, exclusivamente vista como escolaridade, mas também de compromissos e discernimento) dos representantes populares, pouco se poderá contraditar a oportuna, certeira e indesejável previsão de Ulysses. A odisseia atual tem mais sereias, e mais maldosas que as de Homero.

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