O LIVRO DA PROFESSORA
- Professor Seráfico
- 19 de mai.
- 4 min de leitura
Elson Farias*
O livro de Violeta Loureiro, TRAVESSIA, uma vida entre a Amazônia e o
mundo, lembrou-me As grandes amizades, de Raíssa Maritain. Talvez pela
aproximação no gênero memória dos dois livros, ou, quem sabe, ainda,
pela aproximação do grupo étnico das duas autoras. Raissa poeta e
filósofa de origem judaica russa e, Violeta, escritora e socióloga
brasileira, com o pai judeu austríaco, o Sr. Carlos Abraham
Refkalefsky. Ou pela semelhança de parceria conjugal das duas, Raissa
com a vida intelectual assinalada pela união com o notável filósofo
tomista Jacques Maritain, e Violeta, com o ilustre poeta João de Jesus
Paes Loureiro.
Na primeira parte Violeta ocupa-se da vida dos seus pais, a luta pela
sobrevivência, a constituição de uma família de fibra, os irmãos, os
amigos, e de questões regionais que ela conhece muito bem, em razão de
suas múltiplas atividades como pesquisadora da Amazônia contemporânea,
o exercício do magistério superior, da vida universitária, da ação
como educadora e agitadora cultural nos institutos educacionais e nos
diversos meios de influência da sociedade brasileira.
O certo é que enfrentei as 430 páginas do livro com o maior interesse
e o bom prazer da leitura. Sua prosa é agradável, fluente e coloquial,
sem maltratar o léxico, num tempo em que se busca originalidade em
escrever mal, com o mau hábito de esconder as ideias nas expressões
obscuras e palavrosas e se alimentar do mau hábito de macaquear
palavras que nada tem a ver com a Língua Portuguesa. Ao contrário ela
incutiu no seu livro a virtude da clareza, sem o que se frustra o
ensaio, visto suas memórias constituírem, em grande parte, verdadeiros
ensaios de interpretação dos temas agitados, das viagens à experiência
do seu pai até chegar à Amazônia, em Roraima, e lá unir-se à sua mãe,
uma líder espontânea e transformadora da sociedade em que viveu, com
inteligência e generosidade. Porque a virtude do ensaio está na
clareza.
Raissa em suas memórias aproveita para divulgar nomes de intelectuais,
artistas e dos movimentos culturais da Europa, ou da Paris do
alvorecer do século XX, então considerada a capital do mundo; Violeta
cuida em estudar a Amazônia, assunto de sua paixão, discorrendo sobre
a vida dos grandes rios. Fala das atividades do seu pai em Fordlândia
e Belterra, no Pará, aproveitando para reanimar a história dessas duas
comunidades criadas no esforço de restituir à região a liderança de
produção da hévea, num projeto acionado por administradores,
botânicos, ecologistas e tudo o que havia de melhor na tecnologia
florestal no mundo. Plantou-se 75.000 hectares de seringueiras na
década de 70 a 80 do século passado e, apesar disso o empreendimento
não deu certo, porque as árvores foram afetadas pelo mal das folhas,
praga fungicida que reduz e até anula a produção do látex. As
seringueiras reunidas nas áreas de cultivo expõem-se mais a esse mal.
Dizem os seringalistas que esse fungo é disseminado por um inseto com
capacidade de voo limitada, impossibilitando-o de alcançar as árvores
dos seringais nativos. Ao pousar em outras árvores eles morrem. Nos
seringais de cultivo ele prolifera com facilidade pela aproximação das
árvores.
Violeta narra sobre o contato do seu pai com as nações indígenas
Yanomami e Macuxi. Um dia foram todos morar numa casa onde se ouvia de
noite o ronco sinistro das onças. Era a serra de Tepequém de que lhe
resultou o medo das alturas. Mora hoje num apartamento de décimo andar
de um edifício em Belém do Pará, onde se protege com um jardim
plantado na varanda, reduzindo assim as consequências de sua
acrofobia. Mas a sua maior aflição deu-se numa viagem aérea, quando da
travessia do Atlântico entre Portugal e o Brasil. Um terrorista louco
decidiu praticar um ato de sua especialidade dentro do avião, naquelas
alturas. A fera invadiu a cabine de comando da aeronave e nocauteou o
comandante. O avião começou a perder altura com velocidade, a gerar um
clima natural de intenso nervosismo dos passageiros e, no momento em
que já se avistava o mar de perto, um comandante de boeing em viagem
de férias foi à cabine e assumiu o comando da aeronave fazendo-a
arremeter e seguir viagem serena até o seu destino. Foi a experiência
mais dramática de sua lide com as alturas.
Alfabetizou-se aos três anos e não parou mais de ler, estimulada por
sua mãe, grande leitora de romances. E assim descobriu o prazer da
leitura e se transformou na escritora de pulso demonstrada neste
livro. Estudou, colou grau, amestrou-se, doutorou-se, tudo feito em sua
região, no seu país e no Exterior. Tudo pela Amazônia que lhe serviu
de berço e laboratório de suas pesquisas, onde sempre viveu e se
radicou, tomou banho de rio, recebeu o batismo de fogo da malária,
realizou estudos em várias cidades brasileiras, a capital roraimense
Boa Vista, Manaus, Petrópolis e Belém do Pará onde elegeu para morar e
constituir família. Virou mundo conduzida pelo amor ao conhecimento em
Portugal, Universidade de Coimbra e na França, Instituto de Altos
Estudos da América Latina, em Paris. Fez-se assim uma autoridade em
Amazônia e a notável escritora provada numa obra de interpretação
regional, em especial nesse livro de memórias, de uma vida dedicada ao
conhecimento desse mundo batizado com água e consagrado pelo verde.
Deixo aqui a minha homenagem à Professora Violeta Loureiro.
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*Poeta amazonense, o autor é membro da Academia Amazonense de Letras. ocupante da cadeira nº 12, patrocinada por Souza Bandeira. Tem dezenas de obras publicadas, é dos mais festejados escritores da Amazônia.
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