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O LIVRO DA PROFESSORA


Elson Farias*


O livro de Violeta Loureiro, TRAVESSIA, uma vida entre a Amazônia e o

mundo, lembrou-me As grandes amizades, de Raíssa Maritain. Talvez pela

aproximação no gênero memória dos dois livros, ou, quem sabe, ainda,

pela aproximação do grupo étnico das duas autoras. Raissa poeta e

filósofa de origem judaica russa e, Violeta, escritora e socióloga

brasileira, com o pai judeu austríaco, o Sr. Carlos Abraham

Refkalefsky. Ou pela semelhança de parceria conjugal das duas, Raissa

com a vida intelectual assinalada pela união com o notável filósofo

tomista Jacques Maritain, e Violeta, com o ilustre poeta João de Jesus

Paes Loureiro.

Na primeira parte Violeta ocupa-se da vida dos seus pais, a luta pela

sobrevivência, a constituição de uma família de fibra, os irmãos, os

amigos, e de questões regionais que ela conhece muito bem, em razão de

suas múltiplas atividades como pesquisadora da Amazônia contemporânea,

o exercício do magistério superior, da vida universitária, da ação

como educadora e agitadora cultural nos institutos educacionais e nos

diversos meios de influência da sociedade brasileira.

O certo é que enfrentei as 430 páginas do livro com o maior interesse

e o bom prazer da leitura. Sua prosa é agradável, fluente e coloquial,

sem maltratar o léxico, num tempo em que se busca originalidade em

escrever mal, com o mau hábito de esconder as ideias nas expressões

obscuras e palavrosas e se alimentar do mau hábito de macaquear

palavras que nada tem a ver com a Língua Portuguesa. Ao contrário ela

incutiu no seu livro a virtude da clareza, sem o que se frustra o

ensaio, visto suas memórias constituírem, em grande parte, verdadeiros

ensaios de interpretação dos temas agitados, das viagens à experiência

do seu pai até chegar à Amazônia, em Roraima, e lá unir-se à sua mãe,

uma líder espontânea e transformadora da sociedade em que viveu, com

inteligência e generosidade. Porque a virtude do ensaio está na

clareza.

Raissa em suas memórias aproveita para divulgar nomes de intelectuais,

artistas e dos movimentos culturais da Europa, ou da Paris do

alvorecer do século XX, então considerada a capital do mundo; Violeta

cuida em estudar a Amazônia, assunto de sua paixão, discorrendo sobre

a vida dos grandes rios. Fala das atividades do seu pai em Fordlândia

e Belterra, no Pará, aproveitando para reanimar a história dessas duas

comunidades criadas no esforço de restituir à região a liderança de

produção da hévea, num projeto acionado por administradores,

botânicos, ecologistas e tudo o que havia de melhor na tecnologia

florestal no mundo. Plantou-se 75.000 hectares de seringueiras na

década de 70 a 80 do século passado e, apesar disso o empreendimento

não deu certo, porque as árvores foram afetadas pelo mal das folhas,

praga fungicida que reduz e até anula a produção do látex. As

seringueiras reunidas nas áreas de cultivo expõem-se mais a esse mal.

Dizem os seringalistas que esse fungo é disseminado por um inseto com

capacidade de voo limitada, impossibilitando-o de alcançar as árvores

dos seringais nativos. Ao pousar em outras árvores eles morrem. Nos

seringais de cultivo ele prolifera com facilidade pela aproximação das

árvores.

Violeta narra sobre o contato do seu pai com as nações indígenas

Yanomami e Macuxi. Um dia foram todos morar numa casa onde se ouvia de

noite o ronco sinistro das onças. Era a serra de Tepequém de que lhe

resultou o medo das alturas. Mora hoje num apartamento de décimo andar

de um edifício em Belém do Pará, onde se protege com um jardim

plantado na varanda, reduzindo assim as consequências de sua

acrofobia. Mas a sua maior aflição deu-se numa viagem aérea, quando da

travessia do Atlântico entre Portugal e o Brasil. Um terrorista louco

decidiu praticar um ato de sua especialidade dentro do avião, naquelas

alturas. A fera invadiu a cabine de comando da aeronave e nocauteou o

comandante. O avião começou a perder altura com velocidade, a gerar um

clima natural de intenso nervosismo dos passageiros e, no momento em

que já se avistava o mar de perto, um comandante de boeing em viagem

de férias foi à cabine e assumiu o comando da aeronave fazendo-a

arremeter e seguir viagem serena até o seu destino. Foi a experiência

mais dramática de sua lide com as alturas.

Alfabetizou-se aos três anos e não parou mais de ler, estimulada por

sua mãe, grande leitora de romances. E assim descobriu o prazer da

leitura e se transformou na escritora de pulso demonstrada neste

livro. Estudou, colou grau, amestrou-se, doutorou-se, tudo feito em sua

região, no seu país e no Exterior. Tudo pela Amazônia que lhe serviu

de berço e laboratório de suas pesquisas, onde sempre viveu e se

radicou, tomou banho de rio, recebeu o batismo de fogo da malária,

realizou estudos em várias cidades brasileiras, a capital roraimense

Boa Vista, Manaus, Petrópolis e Belém do Pará onde elegeu para morar e

constituir família. Virou mundo conduzida pelo amor ao conhecimento em

Portugal, Universidade de Coimbra e na França, Instituto de Altos

Estudos da América Latina, em Paris. Fez-se assim uma autoridade em

Amazônia e a notável escritora provada numa obra de interpretação

regional, em especial nesse livro de memórias, de uma vida dedicada ao

conhecimento desse mundo batizado com água e consagrado pelo verde.

Deixo aqui a minha homenagem à Professora Violeta Loureiro.

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*Poeta amazonense, o autor é membro da Academia Amazonense de Letras. ocupante da cadeira nº 12, patrocinada por Souza Bandeira. Tem dezenas de obras publicadas, é dos mais festejados escritores da Amazônia.

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