CONFESSO QUE VIVI
- Professor Seráfico

- há 1 dia
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"Assim como se desencadeiam o frio, a chuva e o barro das ruas, quer dizer, o insolente e arrasador inverno do sul da América, o verão também chegava a estas regiões, amarelo e abrasador."
O poeta Pablo Neruda nos fala da Arte da Chuva, em Confesso que Vivi, livro autobiográfico, publicado após sua morte. Fala da sua infância, da verve poética, do partido comunista chileno, do golpe em Salvador Allende e conta muitas histórias.
"Passaram-se alguns anos desde que ingressei no partido... Estou contente... Os comunistas formam uma boa família... Têm a pele curtida e o coração moderado... Por toda parte recebem golpes... Golpes exclusivos para eles... Vivam os espíritas, os monarquistas, os anormais, os criminosos de todas as espécies... Viva a filosofia com muita fumaça e pouco fogo... Viva o cão que ladra e que morde, vivam os astrólogos libidinosos, viva a pornografia, viva o cinismo, viva o camarão, viva todo o mundo, menos os comunis..."
Cá estou, relembrando minhas leituras de adolescente. Me veio à lembrança como um "insolente e arrasador inverno do Sul da América" o Confesso que Vivi do Pablo. Confieso que he vivido.
O sentimento não é por acaso.
Na minha adolescência, vivi e combati a ditadura, nos seus estertores, mas ainda torturando e matando, como na OAB e no Riocentro. Vivi o Partido Comunista, o brasileiro, e aprendi que os "comunistas formam uma boa familia... Têm a pele curtida e o coração moderado".
Vivi a redemocratização, fui estudante das belas caminhadas e da coragem de enfrentar a repressão, com a altivez de todo revolucionário. Vivi o renascimento dos direitos políticos arrancados pela ditadura militar e fui para a rua defender meus sonhos, agora respirando democracia.
Vivi para ver uma das maiores revoluções tecnológicas da nossa história e mergulhei como um adolescente na descoberta das novas formas de comunicação. A Globo já não estava sozinha. Agora o mundo poderia ouvir a voz de um morador da favela de Manaus.
Quando pensei que tinha vivido cem anos e a solidão não tinha me abrasado, vivi a presença nefasta do fascismo. Novamente, peguei a bandeira da democracia e fui para as ruas. Mas a luta se tornou mais intensa e passou a ser também pela vida. Chorei, sofri as perdas de tanta gente amada.
Confesso que a dor de viver foi terrível.
Mas nunca me desfiz dos meus sonhos e, mais uma vez, a democracia raiou, agora com a tristeza e a saudade dos amigos e amigas que partiram na pandemia.
Confesso que nunca pensei em desistir.
Confesso que vivi para ver golpistas caminharem para a cadeia como traidores caminhavam para o cadafalso.
Eles estão na cadeia.
A democracia venceu.
Confesso que continuo vivendo, com as lágrimas da indignação e o espírito dos que partiram. Neruda vive, todos vivem na derrota da corja golpista.
O verão chegou abrasador nessa parte da América.
Lúcio Carril
Sociólogo

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