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O CACHORRO

Vitória Seráfico*


Há algum tempo, li uma crônica – não sei onde, nem me

lembro quem era o autor. Achei tão interessante, que resolvi

enviá-la a outros leitores. A íntegra não era absolutamente como a

transmito. Mas a moral da história, sim. Então, decidi incrementar

o conteúdo, e adicionar o meu tempero, antes de repassá-la. Se

você ainda não a tiver lido, vale a pena o esforço. Caso já conheça

o texto, finja que não. Esqueça. Leia mais uma vez.

Um homem ia visitar um amigo de quem não tinha notícias

havia muito tempo. Depois de checar o endereço e, por telefone,

agendar o contato, pôs-se a caminho.

Chegando ao local, percebeu o cachorro que perambulava às

proximidades do portão. Quando entrou, o cachorro entrou

também, enveredando para o interior da casa.

Os amigos se abraçaram, manifestaram a recíproca

felicidade pelo reencontro, e seguiram, relembrando momentos da

vida universitária, os namoros, as colegas bonitas, as nem tanto, os

bons (e maus) professores, e tudo o mais que lhes trouxesse à

memória aquele pedaço de suas vidas.

A conversa fluía normalmente, quando eis que surge, do

fundo da casa, sua majestade, o cachorro. Mal foi chegando, e já

se punha a praticar a cachorrice inerente ao curriculum-vitae de

qualquer canino. O foco era o visitante. Sem a menor cerimônia,

pôs-se a lamber-lhe as pernas, a roer o bico de seus sapatos, a

pousar as patas (sujas) na sua alva calça de linho. Num pinote,

derrubou o cinzeiro posto à disposição da visita. Estraçalhada, no

chão, a peça de vidro espalhava pontas de cigarro por todo o

tapete.

Claro que a situação era bastante desagradável. Mas o pobre

homem não podia demonstrá-lo perante o anfitrião. Além do que a

boa educação prescrevia pelo menos um sorriso – ainda que

amarelo – para dissipar o embaraço. Mas, com seus botões, ele

pensava: “que absurdo! Por que ele não manda prender este bicho


lá no quintal?... A me lamber as pernas ... estragar meus sapatos ...

sujar minha roupa ... e ele não faz nada!”

Até que chegou a vez do anfitrião. De saída, o animal

arrancou-lhe a sandália e, com os dentes, a estraçalhava, num

canto da sala. Depois da sessão lambe-lambe, começou a roer a

palhinha da poltrona. Além de outras diabruras (não chamam ele

de CÃO?...)

O mesmo embaraço o dono da casa vivia, consciente de sua

impotência em tomar qualquer atitude que pusesse fim aos

excessos do cãozinho. Mas, no íntimo, mostrava-se estarrecido

com aquela visita:

“onde já se viu, visitar alguém, trazendo cachorro?... Nem

acredito! Ele, sequer, põe o bicho pra correr, vendo-o me quebrar

tudo, minha sandália, meu cinzeiro ... Credo! Nunca imaginei!...”

Finalmente, o visitante avisa que já vai. Que alívio! Nem

mesmo uma dosagem mínima de hipocrisia lhe permitiu sugerir

que o amigo ficasse mais um pouco. Qual nada! Queria era livrar-

se o mais breve possível daquele indesejável visitante de quatro

patas.

No portão, os amigos se despedem, risonhos, reiterando o

desejo de novos encontros etc etc

Nisso, o dono da casa percebe que o cachorro ficou.

Imediatamente, grita para o amigo:

- ei, Fulano, o cachorro!

- O quê? Que cachorro?

Apontando pra animal, responde:

- este, o teu cachorro!

- Não! Ele não é meu, não! Pensei que fosse teu.

Só aí ambos descobriram o engano que os fez passivos

diante de tantos desatinos. E concluíram que, de fato, todo

cachorro que se preza, encontrando a porta aberta, entra.

(V.S. /2025)

PS: lembrei-me do título da crônica: Cão, Cão, Cão. Quanto à

autoria, parece ser de Carlos Drumond de Andrade. A conferir.

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