O CACHORRO
- Professor Seráfico
- 10 de abr.
- 3 min de leitura
Vitória Seráfico*
Há algum tempo, li uma crônica – não sei onde, nem me
lembro quem era o autor. Achei tão interessante, que resolvi
enviá-la a outros leitores. A íntegra não era absolutamente como a
transmito. Mas a moral da história, sim. Então, decidi incrementar
o conteúdo, e adicionar o meu tempero, antes de repassá-la. Se
você ainda não a tiver lido, vale a pena o esforço. Caso já conheça
o texto, finja que não. Esqueça. Leia mais uma vez.
Um homem ia visitar um amigo de quem não tinha notícias
havia muito tempo. Depois de checar o endereço e, por telefone,
agendar o contato, pôs-se a caminho.
Chegando ao local, percebeu o cachorro que perambulava às
proximidades do portão. Quando entrou, o cachorro entrou
também, enveredando para o interior da casa.
Os amigos se abraçaram, manifestaram a recíproca
felicidade pelo reencontro, e seguiram, relembrando momentos da
vida universitária, os namoros, as colegas bonitas, as nem tanto, os
bons (e maus) professores, e tudo o mais que lhes trouxesse à
memória aquele pedaço de suas vidas.
A conversa fluía normalmente, quando eis que surge, do
fundo da casa, sua majestade, o cachorro. Mal foi chegando, e já
se punha a praticar a cachorrice inerente ao curriculum-vitae de
qualquer canino. O foco era o visitante. Sem a menor cerimônia,
pôs-se a lamber-lhe as pernas, a roer o bico de seus sapatos, a
pousar as patas (sujas) na sua alva calça de linho. Num pinote,
derrubou o cinzeiro posto à disposição da visita. Estraçalhada, no
chão, a peça de vidro espalhava pontas de cigarro por todo o
tapete.
Claro que a situação era bastante desagradável. Mas o pobre
homem não podia demonstrá-lo perante o anfitrião. Além do que a
boa educação prescrevia pelo menos um sorriso – ainda que
amarelo – para dissipar o embaraço. Mas, com seus botões, ele
pensava: “que absurdo! Por que ele não manda prender este bicho
lá no quintal?... A me lamber as pernas ... estragar meus sapatos ...
sujar minha roupa ... e ele não faz nada!”
Até que chegou a vez do anfitrião. De saída, o animal
arrancou-lhe a sandália e, com os dentes, a estraçalhava, num
canto da sala. Depois da sessão lambe-lambe, começou a roer a
palhinha da poltrona. Além de outras diabruras (não chamam ele
de CÃO?...)
O mesmo embaraço o dono da casa vivia, consciente de sua
impotência em tomar qualquer atitude que pusesse fim aos
excessos do cãozinho. Mas, no íntimo, mostrava-se estarrecido
com aquela visita:
“onde já se viu, visitar alguém, trazendo cachorro?... Nem
acredito! Ele, sequer, põe o bicho pra correr, vendo-o me quebrar
tudo, minha sandália, meu cinzeiro ... Credo! Nunca imaginei!...”
Finalmente, o visitante avisa que já vai. Que alívio! Nem
mesmo uma dosagem mínima de hipocrisia lhe permitiu sugerir
que o amigo ficasse mais um pouco. Qual nada! Queria era livrar-
se o mais breve possível daquele indesejável visitante de quatro
patas.
No portão, os amigos se despedem, risonhos, reiterando o
desejo de novos encontros etc etc
Nisso, o dono da casa percebe que o cachorro ficou.
Imediatamente, grita para o amigo:
- ei, Fulano, o cachorro!
- O quê? Que cachorro?
Apontando pra animal, responde:
- este, o teu cachorro!
- Não! Ele não é meu, não! Pensei que fosse teu.
Só aí ambos descobriram o engano que os fez passivos
diante de tantos desatinos. E concluíram que, de fato, todo
cachorro que se preza, encontrando a porta aberta, entra.
(V.S. /2025)
PS: lembrei-me do título da crônica: Cão, Cão, Cão. Quanto à
autoria, parece ser de Carlos Drumond de Andrade. A conferir.
__________________________________________________________________________
Comments