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Alienação e desumanidade


Tenho procurado entender as razões que levam uma considerada parte da população à manifestações grosseiras de desumanidade e barbárie. A busca desse entendimento não se trata de inquietação isolada, pois tenho lido inúmeros artigos de indignação com a brutalidade de como a vida vem perdendo valor para muita gente.

Podemos reconhecer essa desumanidade partindo de Marx, que atribui à separação do trabalhador do produto do seu trabalho e, por consequência, de si mesmo, o distanciamento da sua própria essência humana, pois se transforma em meio de produção, vira parte da máquina.

Para Marx, o indivíduo se humaniza nas relações sociais, mas para isso precisa estar livre para criar e transformar a natureza, através do trabalho, em benefício da sociedade.

No capitalismo, o que o indivíduo produz vira mercadoria, que gera lucro para o dono da fábrica e o trabalhador sequer tem acesso àquilo que produziu. O que era para humanizar, desumaniza.

Conheço bem essa teoria da alienação marxiana, porém, não vejo como suficiente para explicar a desumanidade que grassa em expressivos segmentos sociais.

Fui até Rousseau e concordo que o ser humano não nasce ruim. Que é a sociedade que o torna desumano, divorciado dos valores naturais de autopreservação e de compaixão. O indivíduo deixa de sentir e desenvolve uma conduta de competição, buscando superioridade diante do seu semelhante.

O filósofo iluminista, que criticava o desenvolvimento da civilização e defendia a estabilidade social a partir de um contrato entre os indivíduos, aponta a compaixão, a busca do bem comum, a igualdade e a liberdade como princípios de resgate da humanidade.

Nesse diálogo dicotômico com Marx e Rousseau, vejo dois indicativos para superação da barbárie que ainda permeia o tecido da sociedade.

É preciso combater a exploração econômica do trabalhador e torná-lo mais próximo do produto do seu trabalho.

A melhoria de vida, a partir do desenvolvimento de relações sociais mais equilibradas e com menores índices de desigualdades, pode reduzir a brutalidade de estratos sociais que não se reconhecem na sua humanidade.

Obviamente que isso é um paliativo, pois enquanto o trabalhador for tratado como máquina, sua luta contra a desumanização será improfícua.

Mas a desumanização não está presente apenas no trabalhador. Ela está em homens e mulheres que estão formalmente fora do mercado de trabalho, ou seja, fora da economia.

A desumanidade está sendo construída fora das relações de produção. Ela passou a ser produto ideológico dentro de igrejas, escolas, universidades, grupo informais e virtuais. A alienação virou instrumento de dominação política.

A perda dos valores da compaixão, do respeito ao outro, da igualdade e do bem comum está sendo promovida em toda sociedade, como indicava Rousseau. A luta, portanto, não é somente contra a relações de exploração capitalista. Ela deve ser travada dentro de todos os campos, conforme definição de Pierre Bourdieu.

A desumanidade se transformou em objeto da hegemonia política. É nela que a extrema direita e sua doutrina neopentecostal repousam suas expectativas de domínio.

Isso é uma ameaça a tudo que conquistamos como cultura, ciência, razão e convivência social. É um retorno às relações de brutalidade extrema como forma de poder.

Precisamos combater essa crise de humanidade provocada pelo desejo incontido de poder político a qualquer custo.


Lúcio Carril

Sociólogo

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