O machismo divulgado em toda cerimônia do casamento católico(cristão?) gerou em mim restrições a respeito de Paulo. Talvez influenciado pela presença anual em cinema onde era projetado o filme Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, formulei juízo pouco favorável àquele homem, tido como um dos centuriões que acompanhavam o andarilho de Nazaré no caminho da cruz. Mais tarde, passados os anos da infância, sabia ser atribuída a ele, Saulo depois Paulo, a criação da Igreja. Tentei interessar-me pelo papel desempenhado por aquela figura, não obtendo, talvez até pela fragilidade do meu propósito ou a deficiência de minha compreensão, mais que a suspeita de ter o convertido desviado os caminhos propostos pelo crucificado. Não levara em consideração o fato de nunca os dois – o assassinado pelo Império Romano e o ex-centurião – se terem encontrado. É possível que, demasiado fortes para a idade, as imagens projetadas nas telas tinham muito a ver com os sentimentos alimentados em
relação a Paulo/ex-Saulo. Minha memória carregou consigo, portanto, a imagem do seviciador, ignorada a circunstância temporal que os afastava, um do outro. E a agonia sofrida na cruz, antes de implantar em mim a dúvida, só fez aumentar o interesse por conhecer o Homem que nasceu em Belém, andou pela Judeia, foi batizado no rio Jordão, pregou na Galileia, agitou Jerusalém, retirou-se em oração no monte das Oliveiras e subiu à cruz no Gólgota. Daí em diante, passada a adolescência, conhecer mais sobre tal figura, nada tivesse mais a justificá-lo, teria na fórmula a.C./d.C. sua mais poderosa motivação.
Como ignorar a importância de uma figura capaz de, por seus atos, pregação e promessas, dividir a História da Humanidade?
Tentei conhecer mais sobre o protagonista desse bom pedaço da História do Ocidente. Tanto, que meu livro Bússolas apresenta-o como uma agulha a percutir sobre meu cérebro, desafiando-me a compreender a trajetória daquele Homem e fazendo-o incluir dentre os que influenciam meus conceitos, sentimentos e práticas. Eis que, agnóstico convicto e permanentemente entregue à tarefa de perseguir a gnose, em momento importante de minha vida, recebo de um amigo muitíssimo estimado[1] o livro Em busca de Jesus de Nazaré. Uma análise literária[2]. É sobre a leitura desse livro que trato aqui.
Nascido na Bélgica, o autor mora no Brasil desde 1958, após diplomar-se em Línguas Clássicas e História Antiga, na Universidade de Louvain. Cofundador do Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), Hoornaert dedica-se ao estudo das origens do cristianismo desde 1984. Durante 30 anos, lecionou História do Cristianismo em instituições teológicas de João Pessoa, Recife e Fortaleza.
Está definido no subtítulo da obra lida a indicação expressa das fontes em que se baseia o autor: textos escritos por terceiros e integrados ao que poderíamos chamar – e ele o faz com tranquilidade, segurança e clareza – literatura bíblica. As fontes consultadas correspondentes à substância do trabalho são as Cartas de Paulo de Tarso aos coríntios, aos Gálatas, aos tessalonicenses e aos romanos; a anônima Carta aos Hebreus, atribuída a um sacerdote não-identificado, e o Evangelho de Marcos. Todos esses textos elaborados entre os anos 50 e 70 d.C.
Extremo cuidado é posto pelo autor, ao apresentar as fragilidades e os problemas devidos ao distanciamento temporal dos relatos em relação à vida do protagonista; à reprodução oral da crônica daqueles dias; as alterações operadas na percepção (no texto escrito, portanto) dos que escreveram sobre Jesus. Isso torna a leitura do livro ora comentado mais interessante e atrativo, ainda. Nem por isso, o filosofo e professor belga deixa de mencionar alguns pontos em que a concordância entre os relatores consultados converge. A principal delas, destacada em primeiro lugar, é a condição de judeu. Isso influencia sua prédica e indica forte suspeita de que ele era um reformador da religião judaica. Daí vem, contudo, uma interpretação passível de abrir novas discussões. A pergunta, então, seria as andanças e a pregação de Jesus eram ligadas à intenção de criar uma igreja? Hoonaert o nega. Para ele, Jesus foi apenas o líder de um movimento. Ou o dirigente do que chama tradição de Jesus. Paulo, porém, teria sido o primeiro a perceber a importância de Jesus.[3] É o homem de Tarso quem atribui ao líder cananeu o caráter de UNGIDO. Nessa condição, o filho de Maria e José é comparado a Davi, descido dos céus para representar a divindade na Terra. Na Carta aos Hebreus ele é um sacerdote que desafia e contrasta com os sacerdotes do Templo. Em Marcos, vemo-lo aparecer como um profeta popular.[4]
O cuidado do escritor avança, quando aponta uma sociedade caracterizada pelo agrafismo. Quase nada era escrito, prevalecendo o relato oral dos mais velhos aos mais novos. Cuida ele, ainda, de recomendar estudos complementares à sua análise literária, com a inevitável consulta aos demais textos do Novo Testamento, focada nos mesmos fenômenos – literários – que informam a obra aqui comentada. Neste particular aspecto, convém lembrar que o significado de expressões e conceitos é passível de alterações, ao longo da história dos povos. Esse também é problema que entretém HOONAERT, bastando mencionar três vocábulos cuja conotação precisa ser devidamente apreendida. Refiro-me a Igreja, Bispo e Apóstolo. As páginas onde se encontra essa matéria estendem-se da 149 à página 152.[5]
Cada capítulo do livro discorre com excepcional clareza, todos eles tentando caracterizar o momento em que os fatos foram relatados por seus respectivos autores e outras peculiaridades da vida social contemporânea a eles. Sem nunca perder de vista as limitações próprias a uma época em que livros eram raridade, e o grau de envolvimento dos protagonistas com as lideranças atuais. Há, mesmo, a menção às divergências entre Paulo e Thiago, este irmão e seguidor de Jesus, dentro de um contexto politicamente agitado.
As metáforas, a tradução, o enredo, como não poderia deixar de ser, também ocupam a percepção do autor. Nesse caso, sendo a metáfora um dos requisitos literários, e havendo interesses e intenções relativamente misteriosas (sem mistério não haveria religião, não é?) nos textos, acabam sendo conhecidas pelos pósteros interpretações entusiastas ou repulsivas em relação à mensagem divulgada. Mesmo o uso metafórico dos números não escapa à percepção e à análise de HOONAERT. Nesse caso, os números 3 e 12, que ele dá como preferidos de Marcos, em seu Evangelho. Dele é a citação de que essas quantidades sempre estão ligadas à ação divina, intermediada pelo líder andarilho. Por isso, tinha 12 anos a menina ressuscitada; havia 12 anos que a mulher curada de uma hemorragia sofria do mal; 12 eram os apóstolos; sobram 12 sacolas de pão, após a multiplicação e a partilha do alimento. Já o número 3 referia-se a outros episódios ou princípios recomendados pela liderança do movimento: um primeiro sentido diria corresponder a solução, síntese, acordo, vitória.[6]Observe-se, aqui, também ser trina a expressão referente à dialética – tese-antítese-síntese. Jesus ressuscita no terceiro dia e é o terceiro o grito da ressurreição. Forçoso é lembrar da Santíssima Trindade, também ela uma síntese divinizada em que o número está presente.
Outras questões fundamentais à apreensão da vida de Jesus e de sua influência histórica (reconhecida, sem mais nem menos, pelo simples fato de nossa História ser dividida entre a.C. e d.C.) são apontadas pelo autor desse instigante Se cativador livro. Para exemplificar, reporto-me ao que é chamado apropriação masculina, não segundo Marcos, mas conforme pensava Lucas. A mulher, no texto desse evangelista, é secundária, dado que ela deve estar a serviço do homem.[7]
Outro ponto digno de destaque refere-se ao pensamento semita, que poderíamos dizer as balizas do pensamento e do discurso da época. Afinal, Jesus de Nazaré era um judeu, também. Reformador ou revolucionário, nem por isso ele perdeu essa condição. Seu ideário, os valores por ele professados, então, vinham do caldo de cultura em que estava mergulhado. Se não era membro da elite, era com ela que ele debatia (às vezes, a combatia) e em muito a ela se contrapunha.
Finalmente, ainda é escasso o conhecimento que se tem – de Jesus, de Paulo e de tantos quantos estão de alguma forma relacionados às práticas e prédicas de ambos, dada a base indireta das informações colhidas sobre eles e seus contemporâneos.
Mesmo assim, entendo hoje ter minimizado durante longo tempo o papel de Paulo de Tarso. A maturidade não me permite imaginá-lo como o construí memorialmente, no período da infância e parte de adolescência. Com os compromissos que advinham de ainda alimentar alguma crença religiosa. Escasseando a cada dia, mas naquele então ainda existente. Tudo isso ficou com o tempo... E me faz valorizar, respeitar e (oxalá ocorra!) plagiar o homenageado por HOORNAERT. De preferência, sem cruz...
Manaus, 01-02-2022
PS: Deixo de me referir ao Capítulo VI – Brevíssima biografia (provisória) de Jesus de Nazaré (pp.162-183), para não desestimular o interesse dos que por qualquer razão sentem-se atraídos pela figura do andarilho da Judeia.
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