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Terra sonâmbula, um comentário*

Comento

Foi o primeiro - e asseguro que não será o único - livro de Mia Couto a dar-me agradável entretenimento. Do autor já ouvira falar. Talvez lera alguma crítica ou notícia sobre ele e sua obra. Precisei dedicar-me à leitura deste Terra Sonâmbula (8ª ed. Maputo, Ndjira, 2014) para logo pretender e projetar frequência assídua às suas páginas, as de ontem (26 títulos) e as de amanhã, sabem-se lá quantas...

Comecei por um romance, presente de uma religiosa salesiana, mandada para Moçambique, depois de anos a serviço de populações ribeirinhas de São Gabriel da Cachoeira. Mulher sensível às agruras dos excluídos, foi posta longe do lugar em que a luta contra a pedofilia e outros crimes lhe trouxe risco de morte. Permanecerá por dois anos na África, de cujos habitantes se fez arguta observadora, como se isso fosse necessário para envolver seu espírito solidário e atraí-la para as lutas do lugar.

Vem daí, e do fato de que ela sabe o que penso e como ajo, a escolha da obra com que sua generosidade me contempla. Assim, a dupla procedência do livro - a do autor e a da doadora - atraiu e assegurou meu interesse, antes que a primeira página fosse lida.

A leitura, concluída, levou-me a muitas conclusões. Todas elas, confirmando o que lera ou ouvira dizer de Mia Couto: um grande autor, tanto pela compreensão de sua gente e suas lutas, quanto pelo estilo e a sensibilidade através dele revelada.

Fosse eu um crítico literário, talvez menor seria meu entusiasmo. Tivesse capacidade para avaliar a técnica literária e criticar o resultado do trabalho do autor, talvez desfocasse o que interessa a um mero e simples leitor: o agrado com que se lê um livro, a adesão à trama que ele desenvolve, o deslumbramento com os relatos que ele nos traz.

Felizmente, socorrem-me a ignorância e a incompetência para criticar ou comentar qualquer obra - literária ou qualquer outra, tanto quanto me sinto aquinhoado com razoável sensibilidade para perceber a realidade posta sob meus olhos. Mesmo que apenas em papel impresso.

Vamos ao que mais me deixa marcado.

Primeiro, sem qualquer ordem hierárquica, cativou-me a própria trama. Dois são os narradores, duas são as percepções postas em diálogo ao longo de todas as 218 páginas. Nelas estão o sofrimento de uma dupla de andarilhos à procura de sua própria história e o depoimento mítico do segundo narrador, organizado em um caderno. Enquanto os dois avançam, não raro girando no mesmo lugar, as linhas escritas por Kindzu tornam emersos as lendas e mitos, as crenças e os costumes dos nativos daquela nação africana.

Talvez não se encontrem muitos escritores capazes de achar poesia no sofrimento de um povo. Não é o caso de Mia Couto. Nem tantos têm o talento tanto que põe poesia onde só parece haver sofrimento e dor. Pode ser que minha impressão de que estive diante de belo exemplar do que se chama realismo fantástico decorra exatamente disso: o sofrimento obriga o autor a se imiscuir nas entranhas mais profundas da realidade vivida por seu povo. E é dessas profundezas que ele resgata os fantasmas e encantados (como diria nosso querido Paes Loureiro), de resto presentes onde quer que se tenha organizado o grupamento humano. O mais próximo, tanto quanto o mais remoto.

Melhor ainda, quando o leitor se prepara para ler um romance, um mero romance - diriam os entendidos, e logo se vê contemplado com o prêmio não esperado: está diante de um escritor que chega a momentos soberbos de especial e contundente poesia. Acima estão alguns desses achados - se é que não me equivoco.

Penitencio-me pelo fato de não conhecer a variedade lusófona dos irmãos moçambicanos, para melhor dizer da obra. É certo, porém, que a amostra do palavreado que penso típico aos daquela nação, listado acima, ajuda a entender-me. Até porque, exonero-me de qualquer intenção crítica e escrevo como - repito, para que não pairem dúvidas - atento leitor. E não mais.

Cabe, ainda, menção ao que chamei A visão de mundo do autor. Algo que alguns talvez prefeririam dizer filosofia de vida. Vá lá... O que sei é o que posso dizer. Digo-o agora, e para finalizar: Encantou-me a prosa poética de Mia Couto. Logo tratarei de obter outros títulos dele. Que já começo a comparar com seu irmão de idioma, José Saramago, para mim o maior escritor em língua portuguesa. Pelo menos no último quarto do século XX. E nos dois primeiros lustros do XXI.

Tenho lido. E dito.

Manaus, 17 de março de 2015, aos 00h05.

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* Este texto comenta livro identificado no texto postado na quinzena anterior, neste mesmo espaço.

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