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Relato (ou registro) de leitura

O texto abaixo, dividido em 8 itens, traz uma espécie de roteiro da leitura, durante a qual registrei aspectos que chamaram minha atenção de leitor. Também destaquei os pontos que mais me tocaram a emoção, além de outros, justifica por compreensível curiosidade. Até que ponto se aproximam as heranças do Lácio, lá em Moçambique e cá. no Brasil. Finalmente, o testemunho escrito do prazer encontrado na leitura.

O livro: Terra sonâmbula. Autor: Mia Couto.

Editora: Nadjira, Maputo-MOÇ. Ano:I2014. Pp.218.


Anotações para Comentários a propósito do livro Terra Sonâmbula, de MIA COUTO

1. Dois relatos, o do narrador (Tuhair) e o de Kindzu, cujos cadernos eram lidos por seu acompanhante (Muidinga).

2. Primeiro plano - Tuhair e Muidinga descrevem a história de vítimas da guerra civil moçambicana. Segundo plano - Muidinga lê para o adulto os Cadernos de Kindzu, relatos míticos de outros tempos em Moçambique.

3. Personagens

· 3.1. Tuhair - o velho

· 3.2. Muidinga - o jovem leitor dos Cadernos...

· 3.3. Kindzu - o autor dos Cadernos, a história paralela.

· 3.4. Taímo - o pai de Kindzu.

· 3.5. Junho, Junhito ou Vinticinco de Junho - o menino que se transforma em galinha.

· 3.6. Surendra Valá - o comerciante indiano.

· 3.7. Assma - a mulher de Surendra Valá.

· 3.8. Afonso - o pastor que alfabetizou Kindzu.

· 3.9. Antoninho - o gordo ajudante de Surendra Valá.

· 3.10. Assane - o paralítico, antigo secretário do administrador.

· 3.11. Farida - a bela mulher, naufragada. A mulher dos Cadernos, p. 70.

· 3.12. Siqueleto - o velho alto, torto, um sobrevivente da guerra.

· 3.13. Euzinha - mulher larga, de muito assento (p. 78) que levava comida para a desaparecida Farida.

· 3.14. Romão Pinto - o português, "dono de muitas terras", p. 87.

· 3.15. Virgínia, Virginha, Virgininha - mulher de Romão, tomou Farida como filha.

· 3.16. Irmã Lúcia - branca, bonita, na Missão contou histórias para Farida.

· 3.17. Gaspar - o filho de Farida, que ela queria reencontrar, depois de fugido da Missão.

· 3.18 - Rafaelão - primo de Tuhair, maltratava a mulher.

· 3.19. Nhamataca - colega de trabalho de Tuhair, nos tempos de colônia.

· 3.20. O pai de Nhamataca - p.96.

· 3.21. Jorgina ou Jeorgina - prostituta que serviu a Tuhair, p. 134.

· 3.22. Maria Bofe - outra prostituta, do campo.

· 3.23. Joaquininha - outra das prostitutas.

· 3.24. Tinita - a prostituta tatuada, p.134.

· 3.25. Abacar Ruisonho - gordo, enormão, chefe do serviço de segurança, que controlava a migração.

· 3.26. Quintino Massua - o alcoólatra esquelético que acompanhou Tuhair e Muidinga na busca de Gaspar.

· 3.27. Juliana Bastiana - a prostituta cega que guiou os dois, à cata de Gaspar.

· 3.28. Silvério Damião - o brigadeiro amante de Juliana, que escrevia cartas para ela.

· 3.29. Carolinda - a bela mulher do administrador, que fez sexo com Kindzu, p. 146.

· 3.30. Estêvão Jonas - o administrador.

· 3.31. Salima - a mulher que manteve relações sexuais com Romão, estando menstruada.

· 3.32. Abdul Remane - soldador maometano.

· 3.33. Nipita - pescador morto por bandos armados, p. 166.

· 3.34. Pequeno pastor - tocava xigovia, p. 189. Contou a história do boi que voa e volta à terra, p. 189.

· 3.35. A bela adolescente - p.198.

· 3.36. Jotinha - dona de poderes miraculosos, mágicos, macumbeira (?), p. 199.

· 3.37. Shetani – um (a) dos acompanhantes de Romão Pinto, na tentativa de depenar o pescoço de Junhito, p. 217.

4. Vocábulos do lugar (?)/página

Embondeiros, p. 9; machimbombo/autocarro (veículo), p. 10; maningue (muito, demasiado), p.12; congolote (bicho de mil patas, maria-café), p. 13; sura e cipaio (aguardente de palmeiras e polícia colonial negro), p.15; micaias e machambar (? e cultivar terreno agrícola, machamba), p. 17; nenecar (adormecer, embalar ou trazer uma criança às costas), p. 20; empançar, depressar, trautinhar (???), quizumbu (hiena), p. 22; monhé(indiano), p. 25; enzebrunhar (?), p.26; naparama (guerreiros tradicionais) e xicuembo (feitiço), p. 27; timaca (confusão, briga), p. 30; canhoeiro (árvore frutífera, do nkanhu), p.30; nganga (oráculo, adivinhador) e ncuácuá (árvore frutífera), p. 32; arambiçar (?), p. 36; caganitas (?), p.37; rastolhar(?), p.40;concho(?), p.41; chissila (maldição), p. 41; psipocos ou xipocos (fantasmas), p. 43; marrecar (?), p. 44; xicuembos (?), p. 45; sura(?), p. 46; nhamussoro (feiticeiro), p. 47; capulana (?),p.48;

5. Uso original de termos conhecidos

...Muidinga SE MENINOU outra vez...

... dando vagas a distraídas BRINCAÇÕES.

...Taímo recebia notícia do futuro POR VIA DOS ANTEPASSADOS...

...visões do velho, ESTORINHADOR como ele era.

... Nem duvidem, avisava mamã, SUSPEITANDO-NOS.

... se escondeu entre meus braços, TREMEDOSO...

... Fazia isso PELAS TRASEIRAS da noite.

... Morrera, fugira, SE INFINITARA?

... carapinhoso, AGUARDENDO nos bafos.

... Me DEPRESSEI a chamar minha mãe.

... ela comendo terra vermelha PARA SEGURAR OS SANGUES DENTRO DO CORPO.

... Escutávamos o MARMULHAR das ondas.

... De repente, um ruído BARULHOSO nos arrepiava: era o BICHORÃO começando a chupar a água.

... desaguou na praia um desses MARMÍFEROS, enormão.

... Era um rapaz negro, de pele escura, AGORDALHADO.

... ideias que meu peito NÃO AUTENTICAVA.

... escutava com ABSURDEZ.

... Passou por entre nós dois, DESDELICADO, provocador...

... Única saída era SOZINHAR-ME, por minha conta...

... tu não sabes o que é andar, FUGISTA, por terras que são de outros.

... ficaram mastigando o tempo, RENHENHANDO .

... eles sofriam a VISÃO DA TERRA EM AGONIA.

... Ela baixou o rosto, ANONIMANDO-SE.

... Tuhauir sai do banco e avança, GATINHOSO, pé posto em cautela.

... Tuhair sorri, CARANTONHOSO.

... Na ponta da corda, o barco parecia um burrico, TROTEONDEANDO, no SOBIDESCE da água.

... Estava preparado para essa batalha com as FORÇAS DO AQUÉM.

... Fiquei nesse PRANTOCHÃO, até que o cheiro de passos me chegou.

... Essa é a ESTRANHEIRA: ele me manejava com delicadeza, VICE-VERSÁTIL, quase me fosse cinturar para uma dança.

... E me marrecava na canoa, INGÊNIO, ACREDITEÍSTA,.

... Havia sim as DESVIRTUDES, bondosas ATROPELIAS.

... Pai, não me castiga dessa maneira, SUSPLIQUEI.

6. Pura poesia

... Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte (p.9).

... Vão para lá, de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante (p.9).

... No convívio com a solidão, porém, o canto acabou por migrar de si (p.10).

... É que me dói uma tristeza...(p.13).

... Quero por os tempos em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências (p.15).

... As estórias dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo (16).

... Minha mãe não teve mais filhos. Juninho foi o último habitante daquele ventre (p.17).

... Esse lugar existe, mas sofre de lonjura muito comprida (p.32).

... Disse que havia duas maneiras de partir: uma era ir embora, outra era enlouquecer (p.32).

... Por isso eu digo: não é o destino que conta, mas o caminho (p.33).

... Cuidado, meu filho, só mora no mar quem é mar (p.33).

... estas foram as palavras do adivinho, que nunca descobri a fundura (p.33).

... O velho lhe dedica paciências, em paternais maternidades (p. 36).

... meus braços cumpriam o serviço de me levar (p.41).

... eu me peixava, cumprindo sentença (p.42).

... Aquela manhã estava bem disposta, aplaudida pelo sol (p.42).

... enquanto ele aprendia a ser morto, a velha parecia há já muito saber da viuvez (p.47).

... O nhamussoro já anunciara o pedido a uma outra mulher, dessas que moram do lado da vida (p.47).

7. A visão de mundo

... O que já está queimado não volta a arder (p.10).

... Parece que o fogo gosta de nos ver crianças (11).

...Os falecidos se ofendem se lhes mostramos nojo (p.11).

... Em tempos de guerra, filhos são um peso que trapalha maningue (p.12).

... A guerra é uma cobra que usa nossos próprios dentes para nos morder (p.17)

... O sonho é o olho da vida (p.17).

...Quem não tem nada não chama inveja de ninguém. Melhor sentinela é não ter portas (p.18).

... Eu gosto de homens que não têm raça (p.29).

... Sem família, o que somos? Menos que poeira de um grão. Sem família, sem amigos, o que me restava fazer? (p.29)

... A morte só ensina a matar (p.31).

... A gente morre cheio de saudade da vida (p.31).

... Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem (p.34).

... A morte é um repente que demora (p.43).

... Fica saber: o chão deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo... (p.43).

... A luz do cego está na sua mão (p.43).

... As ideias, todos sabemos, não nascem na cabeça das pessoas (p.44).

... A terra não envelhece porque trabalha deitada (p.48).

8. Comento

Foi o primeiro - e asseguro que não será o único - livro de Mia Couto a dar-me agradável entretenimento. Do autor já ouvira falar. Talvez lera alguma crítica ou notícia sobre ele e sua obra. Precisei dedicar-me à leitura deste Terra Sonâmbula (8ª ed. Maputo, Ndjira, 2014) para logo pretender e projetar frequência assídua às suas páginas, as de ontem (26 títulos) e as de amanhã, sabem-se lá quantas...

Comecei por um romance, presente de uma religiosa salesiana, mandada para Moçambique, depois de anos a serviço de populações ribeirinhas de São Gabriel da Cachoeira. Mulher sensível às agruras dos excluídos, foi posta longe do lugar em que a luta contra a pedofilia e outros crimes lhe trouxe risco de morte. Permanecerá por dois anos na África, de cujos habitantes se fez arguta observadora, como se isso fosse necessário para envolver seu espírito solidário e atraí-la para as lutas do lugar.

Vem daí, e do fato de que ela sabe o que penso e como ajo, a escolha da obra com que sua generosidade me contempla. Assim, a dupla procedência do livro - a do autor e a da doadora - atraiu e assegurou meu interesse, antes que a primeira página fosse lida.

A leitura, concluída, levou-me a muitas conclusões. Todas elas, confirmando o que lera ou ouvira dizer de Mia Couto: um grande autor, tanto pela compreensão de sua gente e suas lutas, quanto pelo estilo e a sensibilidade através dele revelada.

Fosse eu um crítico literário, talvez menor seria meu entusiasmo. Tivesse capacidade para avaliar a técnica literária e criticar o resultado do trabalho do autor, talvez desfocasse o que interessa a um mero e simples leitor: o agrado com que se lê um livro, a adesão à trama que ele desenvolve, o deslumbramento com os relatos que ele nos traz.

Felizmente, socorrem-me a ignorância e a incompetência para criticar ou comentar qualquer obra - literária ou qualquer outra, tanto quanto me sinto aquinhoado com razoável sensibilidade para perceber a realidade posta sob meus olhos. Mesmo que apenas em papel impresso.

Vamos ao que mais me deixa marcado.

Primeiro, sem qualquer ordem hierárquica, cativou-me a própria trama. Dois são os narradores, duas são as percepções postas em diálogo ao longo de todas as 218 páginas. Nelas estão o sofrimento de uma dupla de andarilhos à procura de sua própria história e o depoimento mítico do segundo narrador, organizado em um caderno. Enquanto os dois avançam, não raro girando no mesmo lugar, as linhas escritas por Kindzu tornam emersos as lendas e mitos, as crenças e os costumes dos nativos daquela nação africana.

Talvez não se encontrem muitos escritores capazes de achar poesia no sofrimento de um povo. Não é o caso de Mia Couto. Nem tantos têm o talento tanto que põe poesia onde só parece haver sofrimento e dor. Pode ser que minha impressão de que estive diante de belo exemplar do que se chama realismo fantástico decorra exatamente disso: o sofrimento obriga o autor a se imiscuir nas entranhas mais profundas da realidade vivida por seu povo. E é dessas profundezas que ele resgata os fantasmas e encantados (como diria nosso querido Paes Loureiro), de resto presentes onde quer que se tenha organizado o grupamento humano. O mais próximo, tanto quanto o mais remoto.

Melhor ainda, quando o leitor se prepara para ler um romance, um mero romance - diriam os entendidos, e logo se vê contemplado com o prêmio não esperado: está diante de um escritor que chega a momentos soberbos de especial e contundente poesia. Acima estão alguns desses achados - se é que não me equivoco.

Penitencio-me pelo fato de não conhecer a variedade lusófona dos irmãos moçambicanos, para melhor dizer da obra. É certo, porém, que a amostra do palavreado que penso típico aos daquela nação, listado acima, ajuda a entender-me. Até porque, exonero-me de qualquer intenção crítica e escrevo como - repito, para que não pairem dúvidas - atento leitor. E não mais.

Cabe, ainda, menção ao que chamei A visão de mundo do autor. Algo que alguns talvez prefeririam dizer filosofia de vida. Vá lá... O que sei é o que posso dizer. Digo-o agora, e para finalizar: Encantou-me a prosa poética de Mia Couto. Logo tratarei de obter outros títulos dele. Que já começo a comparar com seu irmão de idioma, José Saramago, para mim o maior escritor em língua portuguesa. Pelo menos no último quarto do século XX. E nos dois primeiros lustros do XXI.

Tenho lido. E dito.

Manaus, 17 de março de 2015, aos 00h05.

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