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REGISTROS HISTÓRICOS DA FORMAÇÃO E DA VIDA DO POVO HEBREU/JUDEU

SEQUÊNCIA GENEALÓGICA DA ORIGEM ATÉ J. C.

IINTERPRETAÇÕES BÍBLICAS

Orlando SAMPAIO SILVA

I PARTE - B

A Q U E D A - A INSTITUIÇÃO DO TRABALHO

Segundo o mito bíblico da gênese de Adão e Eva, com a criação, Deus teria dito à Eva que ela estava proibida de comer o fruto de determinada árvore, a “árvore do conhecimento”, “do bem e do mal”, a “árvore da vida”, uma provável macieira. Porém, nesta árvore estava enroscada uma serpente e ela, tentadora, veio a convencer Eva a comer do fruto da árvore. Eva, tentada, desobedecendo a determinação divina, comeu da maçã e ofereceu a “fruta proibida” a Adão, que também a comeu. Caracterizou-se a desobediência. Então, Deus puniu o casal primeiro com a expulsão do Jardim do Éden e determinou que Adão e Eva, a partir daquele momento, teriam que viver com o produto de seu trabalho.

Esta é a leitura literal da narrativa bíblica de momentos inaugurais na criação.

Porém, a análise interpretativa com objetivos gnosiológicos permite que se contemple a riqueza inventiva e conceptiva do mito da criação.

O que foi a queda?

A desobediência de Eva e Adão é considerada, na religião católica como sendo o “pecado original”, o pecado da origem. Comer do “fruto proibido” se tornou uma alegoria do comportamento pecaminoso do ser humano. Em decorrência desta prática “pecaminosa”, nesta concepção, todos os descendentes do casal primevo estavam condenados ao “pecado original” por todos os séculos e séculos, como uma mácula, como um trauma provocado por uma desobediência a Deus.

Os pecadores perderam a inocência. Ocorreu a desobediência e, em decorrência, a expulsão. Foi a queda. Uma catástrofe para o gênero humano. Já na sua origem ele estava marcado pelo “pecado” inapelável.

Esta concepção do “pecado original” é um dogma na religião católica, mas é inexistente na muçulmana, mesmo sendo esta uma religião abraâmica. Na religião hebraica o “pecado” se reporta aos atos de desobediência a Deus, às normas éticas e morais configuradas no Decálogo, os mandamentos da lei de Deus, constantes das “Tábuas da Lei” reveladas à Moisés no Monte Sinai, por ocasião do Êxodo (cf. veremos).

Na minha maneira de interpretar o “Gênesis”, esta questão da “queda” pode ser abordada de perspectiva objetivista, não assim (tão) catastrofista; conforme a seguir está colocada, em síntese.

O Deus bíblico avaliava a obediência das suas criaturas à sua condição de Deus único, criador e mentor de vidas humanas. A Bíblia contém uma pletora de referências à centralidade da determinação divina da crença imperativa no Deus único e, da obediência às suas determinações e valores. Há diversas narrativas bíblicas referentes a esta busca divina da prova da fidelidade de suas criaturas a si, como o deus criador. Um exemplo está no episódio em que Deus procurou testar a fidelidade de Abraão dando a entender que Abraão deveria matar seu filho Isaac (conf. veremos).

Constata-se que, na narrativa do Gênese, Adão e Eva, os primeiros, logo após a criação já se viam tolhidos em sua autonomia, ante a primeira proibição imposta pelo criador. Eva, a primeira mulher, logo ao ser instituída, encontrava-se contida em seu livre arbítrio. Estava proibida de comer de um fruto.

Note-se, porém, que a desobediência de Eva não foi um ato espontâneo, ela não agiu sponte sua ab initio. Na cena criada por Deus se encontravam Eva e Adão; mas ocorreu uma intromissão de um terceiro personagem, a serpente, e esta era a encarnação de satanás. A presença de satanás foi uma concessão divina, para testar suas criaturas? Ou o suprassumo do mal interveio na cena para desafiar o criador, pondo em prática um típico ato seu, carregado de falsidade e de maldade? Compreendamos, então, o texto e a essência do drama. Deus atuou (logo após a criação) ao proibir que Eva comesse do fruto. A serpente convenceu Eva a comê-lo. Eva se viu ante duas pressões, uma que tolhia e a outra, que instigava. Instalou-se um confronto de poderes, o de Deus contra o qual se insurgiu o de satanás. Estava instaurada uma oposição entre poderes, teoricamente, o do Bem e o do Mal. Este segundo poder levou vantagem na contenda: Eva foi convencida pela serpente-satanás a comer do fruto e o comeu, e complementou seu ato desobediente ao levar Adão a compartilhar do mesmo fruto proibido. Deus não perdoou a queda de Eva (e de Adão) ante a ação tentadora de satanás. Ele havia sido confrontado, desobedecido, desrespeitado. Então, irado (a ira divina), Deus puniu o casal primevo com a expulsão do jardim do paraíso terrestre e suas consequências.

Esta interdição do consumo de determinado alimento (o fruto proibido) originou o surgimento da primeira oposição binária (instrumento matemático de análise algébrica tão ao gosto de Lévi-Strauss). Se determinado alimento tinha seu consumo proibido, logo, como contraponto ou corolário, não havendo restrição explícita com relação ao consumo dos demais alimentos, estes podiam ser consumidos. Esta dedução lógica se impõe pela evidência. Esta conclusão se explicita a partir daquelas premissas acima e ela é reforçada pela determinação de que o primeiro casal, por ter sido expulso do Éden, deveria viver com o produto do seu trabalho. Adão e Eva (e sua família) deveriam produzir os insumos necessários à sua subsistência, de onde se deduz que eles teriam que produzir seus alimentos. A produção destes era vitalmente necessária e estava claramente liberado seu consumo pelo criador.

A questão da “proibição de comer do fruto proibido”, deve ser vista, também, como o primeiro teste divino da obediência de suas criaturas. Eva desobedeceu ao comer a fruta e ao oferecê-la a Adão, que dela compartilhou. Eva desobedeceu, Adão desobedeceu. Deus os puniu ao expulsá-los do Jardim do Éden e ao determinar que eles teriam que viver com o produto do seu trabalho. Como registrado acima, este episódio caracteriza a “queda”; esta contém, assim, as duas faces da moeda, ou seja, a expulsão e a imposição do trabalho. A queda decorreu da desobediência.

Como se percebe, no mesmo ato da expulsão, Deus criou o trabalho. Tudo estava começando e, até então, inexistia o trabalho produtivo. Este foi mais um ato divino na “criação”, a instauração do trabalho livre em meio às suas criaturas. Tornou-se o trabalho uma ação intrínseca ao ser humano, que passou a ser própria à condição humana, à substância em essência da vida dos homens e das mulheres em si, em grupos e na sociedade. Até então, antes da expulsão, o casal primevo podia viver das benesses que lhes propiciava a natureza envolvente. Sem nenhum esforço, sem trabalho produtivo, no “jardim”, ele obtinha tudo o que necessitava para viver. A partir da “expulsão”, Adão e Erva e seus descendentes passaram à prática do trabalho necessária à vida, trabalho auto preservativo, e deixaram de ser dependentes apenas receptivos dos bens naturais, passando a ser produtivos e autossuficientes pelo próprio trabalho. Com a desobediência, o primeiro casal caiu no trabalho!

Caim, o primogênito, passou a trabalhar a terra como agricultor, e Abel se tornou pastor de ovelhas. E os filhos de Caim: Jubal teria inventado a música; a filha Noêmia, a fiação e a tecelagem com lã, e o filho Tubalcaim tornou-se ferreiro e fabricante de instrumentos de cobre e ferro (!).

A instauração do trabalho entre os humanos, na origem bíblica, teria sido uma maldição? Esta é uma questão teórica importante a ser analisada, em sua complexidade, em outra oportunidade e em outro contexto epistêmico.

Lembremos o que está registrado acima sobre os personagens da primeira cena do drama paradisíaco, e indaguemos: É o trabalho uma instituição de Deus ou de satanás, na simbologia bíblica? Tema para meditação e debate.

Enfocando-se a transgressão da “proibição” sob esse enfoque analítico, logo se percebe a lógica divina ao determinar a Adão e a Eva, após a “criação”: “Crescei e multiplicai-vos”. Veja-se: estava criado um casal, um homem e uma mulher, que estavam vivendo juntos. Para que o “povo de Deus” viesse a existir era necessária a reprodução humana. Ter relações sexuais para reproduzir foi um ato natural e, tanto o ato quanto a reprodução humana, estavam autorizados ou determinados pela vontade divina na ordem constante do “crescei e multiplicai...”. Aliás, a determinação divina da reprodução de vidas teve um sentido mais amplo, que transcendeu à categoria dos humanos, pois ela teve validade para todos os seres viventes no Jardim, animais e vegetais. Evidência no mito.

Interpretar estes primeiros momentos da vida humana no Éden atribuindo àquelas cenas em torno do “fruto proibido” um caráter simbólico ou metafórico, que se reportaria a um ato não explicitado, não tem sustentação lógica.

A análise e a interpretação objetiva e realista da questão do ato de desobediência acima delineada torna improvável e inadequada a visão de um caráter simbólico atribuído à ideia do “fruto proibido”, de vez que esta perspectiva simbólica contém a visão equivocada do objeto em torno do qual ocorreu a “desobediência” ao interpretar o ato de “comer o fruto proibido” como uma metáfora do relacionamento sexual. Comer da “maçã” por Eva e Adão simbolizaria a prática do ato sexual por eles. Neste enfoque interpretativo, a cena vivida por Eva, Adão e a cobra simbolizaria o primeiro relacionamento sexual, o primeiro ato sexual praticado pelo casal. Sob esta visão, a “desobediência” - comer do fruto proibido, ou seja, praticar a primeira cópula - teria feito com que o ato sexual se tornasse uma ação pecaminosa à época e para o resto dos tempos. Ele seria o “pecado original”. Esta concepção contém uma contradição que ofende à racionalidade. A vida humana não começaria com uma contradição e um ilogismo divino de determinar a reprodução e, ao mesmo tempo, condenar o ato reprodutivo. Isto seria uma incongruência, seria a instauração da perplexidade, da dúvida atroz, e da impossibilidade de dar início à reprodução humana, em meio aos primeiros seres integrantes do “povo de Deus”. A condenação obscureceria e desqualificaria a determinação! Em verdade, o “pecado”, no contexto bíblico, tem outras conotações, conforme acima e como veremos ao longo deste estudo. E a lógica indica como verdade (no mito) que a determinação contida na sentença “Crescei e multiplicai-vos” sacralizou o ato sexual, a reprodução. Deus atribuiu aos seres humanos (e aos demais seres vivos) uma centelha de seu poder de criar vidas! Homo Deus.

Adão e Eva cumpriram a primeira determinação (positiva, construtiva, biogenética) feita a eles por Deus, após a criação (“Crescei e multiplicai-vos!”). Então, nasceram os filhos e as filhas de Adão e Eva.

[CONTINUA. Próximo Capítulo: Os Filhos de Adão e Eva - A Procriação]

E-mail: osavlis@gmail.com


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