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O processo criativo como o vejo

Assídua visitante desta nau em procura de boa terra consulta-me sobre o processo criativo a que me entrego, na busca de fazer-me poeta. Confesso-lhes minha dificuldade em dizê-lo. Pelo menos, dizê-lo cabal e peremptoriamente. Como o ar que penetra no corpo até chegar aos pulmões, nunca me detive em acompanhar o que se chama ou considera o processo criativo. Tudo o que vier em seguida será, porém, simples tentativa de enfrentar problema só agora emergido, sem que eu assegure ter sido como relatarei, todas as vezes em que me pus e ponho entretido em escrever em versos. E em prosa? creio que a pergunta também caberia. Assim, ao que me parece, tudo sobre o que escrevemos – sejam poemas, sejam contos, ensaios ou artigos, uma simples linha... - vem de dentro de nós. O papel apenas recebe as impressões que restaram em nossa memória; e, por isso, indiferente à forma que apresentam e chegam diante dos olhos do leitor e do ouvido do ouvinte. Tudo o que houve nem sempre impacta da mesma forma o que lê ou ouve. O mais comum é que venha também do leitor ou ouvinte muito do que a ele é repassado pelo que escreve. É isso um grande motivador do ato de dizer e escrever: desejo dizer e anseio por que haja os que desejam ler e ouvir. Como será recebido o meu texto? Ele pode ter origem, como fato, num livro, numa imagem, na própria vida, em qualquer das fases dela, ao sabor da capacidade de memorizar. Nesse item, não tenho do que me queixar. Sou quase um paquiderme, se é que os outros realmente têm boa memória! Mas fato e relato são coisas diferentes, com muita frequência até contraditórias. Penso que foi assim, mas não tenho certeza absoluta que foi isso mesmo. Também aí o leitor ou ouvinte tem papel fundamental na recepção do texto. Isso me levou a imaginar que nunca se lê o mesmo texto duas vezes. A cada vez que se o lê, é outro o leitor, tal o grau de mutabilidade de todos, dia-após-dia...

Talvez é chegada a hora de tentar o que prometi no início: dizer algo sobre o MEU processo criativo. Em maiúsculas, mesmo, porque isso tem muito a ver com a individualidade. Há poemas, por exemplo, com os quais sou despertado, às primeiras horas da manhã. Martelam minha cabeça, sem que eu mesmo esteja acordado. Como se se tivessem instalado em mim, aproveitando-se de Morfeu e fazendo dele o anestésico que não me permitiu despertar do sonho(?) ou simplesmente sono. A mesa de cabeceira e o bloco de papel nela permanentemente disponível serve para o registro da primeira ideia, como se fora um ovo e o bloco de papel um ninho. A partir daí, reflito sobre o que posso escrever a propósito do tema, do acontecimento, da ideia. Não é raro que uma primeira reflexão me leve a escrever o que projeto como título do poema ou do texto em prosa. Algo semelhante ao xarope concentrado de que, mais tarde, com o acréscimo de água, se faz bom refresco ou suco. Daí em diante, seja o ovo, seja o concentrado, vou cozinhando aqueles ingredientes iniciais, até o momento em que dou o texto por concluído. Nessa transição, consulto dicionários, mecanismos eletrônicos de busca, mexo e remexo na memória, saco da prateleira algum livro ou alguns, consulto anotações antigas – até o momento em que dou um basta nesse para mim agradabilíssimo exercício. Quando é o caso, pouco tempo depois estou em contato com algum editor. Sem a certeza, confesso, de ter ACABADO ou CONCLUÍDO a obra. Sei que este não é fenômeno de que sou paciente original. Duvido que alguém um dia tenha de fato CONCLUÍDO ou ACABADO uma obra, seja ela qual for. No caso do livro, esperássemos conclui-lo de fato, não haveria indústria gráfica. Quem ainda não escreveu algum, que o experimente! Estou quase 100% certo de que à satisfação com a pretensa conclusão corresponde a convicção de que tudo poderia ser dito melhor, mais bonito e agradável ao leitor. O trabalho de revisão, a que nenhum autor foge, por melhor que seja o revisor da editora, revela sobre a provisoriedade da obra artística. Mas é preciso levar aos outros o que se terá escrito. A interrupção a seguir dá prova disso: escrevemos e falamos todos, portanto, porque gostamos de ser lidos e ouvidos.

Manaus, 21-05-2022

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