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Meus estados de sítio

Minhas caminhadas costumeiras mais bem fazem à cabeça que às pernas e músculos um tanto maltratados por uma juventude de mau jogador de futebol. Os sete ou oito mil metros percorridos por pisadas firmes favorecem a proximidade com as estrelas, pois é de bom aviso deixar a cabeça percorrer os espaços insuspeitados, enquanto os pés pisam firme a terra cheia de tantas suspeitas. Em especial, quando o cenário circundante é desenhado em verde de vários tons, sabendo-se que detrás dele a massa líquida de cor escura reverbera a luz crepuscular, enquanto do outro lado se pode suspeitar da existência de algum resquício da vida selvagem.

Poucos são meus conhecimentos, para assegurar que o trajeto é debruado por paisagem em que a mata primária predomina. Faltam-me saberes científicos que levem a tamanha e tão importante constatação. Imagino, porém, que a voracidade humana não terá eliminado toda a virgindade daquela mata, única matéria a que se pode atribuir tal condição.

Enquanto meus pés alcançam um ponto mais à frente, os neurônios desaquietam-se e fazem sua própria caminhada, voando ora à frente ora atrás, perscrutando territórios ainda não pisados ou sobrevoando outros, um dia percorridos.

O que me veio à mente, ainda na tarde ensolarada que viu repetir-se o exercício tão pedestre, foram imagens de uma infância da qual cada dia mais me distancio. Como todos os mortais. Lembrei-me da palavra sítio e dos vários significados que ela traz consigo. Primeiro, aqueles pedaços de terra, que na zona rural servem para o plantio de espécies arborícolas e florísticas. Às vezes não cabendo neles mais que meia dúzia de laranjeiras ou limoeiros, uma pimenteira, quem sabe um pé de tomate. É certo que sempre haveria uma casa, se assim podem ser chamados, indistintamente, quatro ou menos cômodos arranjados em estranha arquitetura, o sapé a envolver as paredes, um terreiro limpo que dá gosto ver, cercando todo o prédio – se isso me for permitido falar.


Havia os sítios em que a finalidade única era o lazer, a recreação dos proprietários, tão diferentes dos outros, que colhiam ali sua própria sobrevivência. Os abastados logo providenciavam uma ampla construção, mesmo que de madeira fosse. Sendo algumas mais confortáveis que as casas urbanas dos mesmos donos. Era naquele local em geral afastado do centro da cidade, que as famílias reuniam amigos e parentes, seja para praticar algum esporte, nadar e alimentar-se como o príncipe da música de Chico Buarque de Holanda. É possível que nem todos comessem como se fossem príncipes, mas também é quase certo que raramente isso aconteceria num sábado. Felizmente, ninguém estava obrigado a estatelar-se no chão, atrapalhando o tráfego. E os domingos se encerravam com a certeza de que o próximo já reservava novo encontro.

Ir ao sítio, portanto, era costume que servia para ampliar amizades, aprofundar outras, festejar acontecimentos triviais, como o aniversário do dono da casa, mas também para, por empréstimo, servir à comemoração do aniversário de algum amigo.

Muitas das vezes, o sítio proporcionava momentos de inesquecível brincadeira às crianças. Tanto quanto me lembre, o primeiro desses lugares por mim visitados recebeu-me ainda em calças curtas. Pertencia ao nosso senhorio, de nome tão paradoxal quanto a generosidade que se possa encontrar em um proprietário de imóveis para alugar: Antônio Valente Cordeiro chamava-se o dono da casa em que morávamos, no Umarizal (Rua 14 DE Março, 664, se a memória não me trai).

Se as calças eram curtas, curto e quase apagado ficou-me o registro daquele passeio. Do quanto meus neurônios retiveram, cabe mencionar o nome da localidade em que se situava – o Bengüi. Chegava-se lá depois de vagarosa viagem de trem, em comboio que corria pelos trilhos da Estrada de Ferro de Bragança. Da casa, resta apenas uma impressão, a de que era ampla, pintada de branco (na memória ela se enche de cores) e com algumas janelas na parede frontal. Mais, apenas a certeza de que terá sido dos dias mais agradáveis daquele período de inocente infância. Sequer seria capaz de listar o grupo que compúnhamos, na visita à casa de campo (assim seria dito hoje) do nosso senhorio.

Mais tarde, o Caiçara primeiro; o sítio do Tenoné em seguida, recebiam-nos para belos domingos de sol. Tio Ophir, o proprietário, atraia parentes e amigos, para desfrutar da companhia dele, da tia Estela e de seus doze filhos.

O Caiçara, a bela casa de cuja varanda era possível apreciar o movimento ruidoso de adultos, jovens e crianças na piscina, fora construído pelo tio, um apaixonado em modificar a paisagem natural e oferecer aos seus amigos a oportunidade de divertimento e de alimentar sentimentos como o que me inspira este registro, a gratidão.

Lembro-me bem, e isso devo ao fato de já àquela altura ser adolescente, da festa que reuniu dois clubes de jovens, aos quais pertenciam meus primos, o Ypiranga e o Tangará. Era um domingo, 20 de maio de um ano qualquer, lá pelo início dos anos 1950. Aproveitava-se o aniversário de um dos primos, Gélson.

A data fixou-se em meus registros memoriais, não pela alegria reinante enquanto durou o sol. Ao revés, um fato beirando a tragédia, quando o sol se tinha recolhido e todos nos preparávamos para voltar à casa, responde pela recordação. Nossa irmã Maria Lúcia, mesmo acompanhada de uma babá, caiu na piscina e se debatia no pleno exercício do direito à sobrevivência, quando um jovem, todo metido em roupas, lançou-se à água e a resgatou. Felizmente, com vida.

Como esquecer do Machico, de cuja altura não me lembro, que do rosto não me deixou um só vestígio impresso na memória? Do nome, porém, jamais esqueci, como jamais esquecerei. A grandeza do seu gesto preenche toda minha capacidade de agradecer. Estou certo, agora, de que merecia ter recebido na pia sagrada o nome mais justo: Bomchico.

Houve, ainda, o sítio do Tenoné. Conhecemo-lo ao longo do período em que o tio o preparava, para transformar em local aprazível, onde quem desejasse ficar à sombra encontrava belas árvores protetoras. Quem desejasse dourar a pele e amenizar o calor tropical, para isso dispunha da piscina de águas mais azuis que já vi. E nas quais terei lavado alguns dos meus mais graves pecados. E amenizado calores próprios da idade.

Também para lá nos levava o Américo, motorista do caminhão do tio Ophir. A alegria e a generosidade desse irmão de nossa mãe bem que combinava com a cordialidade e os cuidados que Américo punha, nas mãos seguras envolvendo o guidão do carro e no coração que animava nosso trajeto. Lembrar que nosso avô Torquato viajava na carroceria, sentado em uma ampla cadeira! Quem diria?...

Sinto como se tivesse ocorrido ontem, domingo também, disputando quem demorava mais tempo abaixo da linha d’água, sem respirar. Tio Ophir, vô Torquato e eu éramos os disputantes. Quase sempre, o mais velho ficava mais tempo sem respirar. O fumo e a idade não o faziam menos resistente. Ou era a vida que a ele tinha ensinado mais que a nós?

Em outro sítio, propriedade do médico Carlos Pinto de Almeida, a experiência que poderia ter sido trágica ganhou outras cores, e estas ficaram retidas em nossa (minha, pelo menos) memória. O lugar é chamado Moema. Fica, também, à margem da assassinada Estrada de Ferro de Bragança, morta pela mesma sanha que matou tantos brasileiros. Quando eu já era mais que um adolescente...

Caminhávamos por estreita picada, no meio da mata. Nosso destino era o igarapé que passava nos fundos do terreno, a que as árvores davam sombra e segurança. O riozinho corria limpo e raso, favorecendo o banho e os folguedos sobretudo das crianças. A expectativa, cujo ânimo costuma ser proporcional às cores com que se pintam as maravilhas de qualquer lugar, fazia-nos ansiosos e excitados. Quase nos descuidávamos dos riscos de percorrer veredas ensombrecidas pelas muitas árvores, tanta era nossa ansiedade por molhar-nos nas águas frias e claras anunciadas pelo proprietário, amigo de nosso pai.

De repente, um grito: uma cobra! Cuidado! Os que iam à frente ainda tiveram a felicidade (?) de ver a fina e brilhante cobra coral, na fuga atabalhoada, em direção ao matagal. Era como se o arco-íris se tivesse despregado do céu e agora se visse forçado a buscar refúgio dos que dele fugiam.

Resta-me, do episódio pregado nos olhos, o multicolorido da pele da que dizem ser réptil da maior letalidade. O domingo encerrou com muita coisa para contar. Aos filhos e netos, em especial, que eles gostam de ouvir histórias. Não duvide se algum deles acabar por atribuir ao avô o mérito pela fuga do animal. Pais e avôs são heróis, mesmo sem o quererem.

Na adolescência, o sítio que sempre nos recebia pertencia ao casal judaico Leão e Reina Aguiar. Pais de Ruth, Mary, Samuel, Mercedes, Isaac e Ruy, os vizinhos se compraziam em encher seu carro com os amigos dos próprios filhos.

Passávamos os domingos no terreno do lugar chamado Quarenta Horas, no então distante bairro do Coqueiro, na capital paraense. Além da casa confortável que mantinham lá e a que davam bom trato os caseiros-moradores, seu Leão formoseara um açude, transformado em lago onde se podia tomar banho e dar mergulhos, passear de canoa e praticar outras atividades sempre ao gosto de crianças e adolescentes.

Nem sempre nossos pais nos acompanhavam, tanta a confiança depositada no casal amigo. Sabíamos todos que levados pela manhã, à tarde seríamos devolvidos à casa sadios e íntegros. E mais ricos, daquela riqueza que só os bons sentimentos, a amizade e a gratidão podem tecer.

Já adulto completo, às portas de receber o diploma de bacharel em Direito, foi de Pedro e Celeste Gomes que recebi o privilégio de frequentar sua casa de campo – esta, sim, era uma – no Município de Benevides, na região metropolitana de Belém, quando não era assim que a conhecíamos.

Bastava uma hora de carro, e lá estávamos, à beira da piscina, sob a sombra das muitas árvores plantadas em redor da confortável casa, ou amesendados na ampla varanda (se é que a memória não me está pregando uma peça e inventando coisas), bebericando com os donos da casa ou almoçando à farta, como era costume lá.

A grande estima por Antônio Jorge Abelém, noivo da filha de Pedro e Celeste Gomes, e nosso colega (um ano à minha frente) na Faculdade, foi responsável pela aproximação com tão agradáveis pessoas. Depois, voamos solo. Já se ia ali, mesmo se o amigo e colega estivesse ausente. Era certo, porém, que nem sempre os anfitriões estavam em Benevides. Como com frequência se registrou, sempre que Sílvio Braga, então deputado, calhava de visitar Belém. Nessas ocasiões, à turma de sempre - (Antônio, Paes Loureiro, Ronaldo Barata, Leonildes Silva) juntava-se o Cléo Bernardo, irmão do deputado.

Aí, quando chegávamos ao sítio, o banho dissipava o efeito das muitas paradas ao longo da rodovia. Era preciso esfriar a cabeça e dissolver as muitas doses (de caipirinha, cerveja, uísque ou vinho, o que tivesse para ser comprado – e sorvido) ingeridas.

Eram assim os primeiros sítios que conheci. Assim eram as relações que tal espaço proporcionava a pessoas que são ricas porque o coração não bombeia apenas sangue para suas artérias.

Depois, aprendi que sítios são também, lugares onde se encontram vestígios de civilizações anteriores à nossa. Falo dos sítios arqueológicos, certa vez criticados por um intelectual (?) que se sentiu ofendido, ao saber que assim também se chamam tais locais. Como então – disse-me ele- desqualificar lugares quase sagrados, chamando-os de sítio? Vejam os leitores, quando a pobreza mental de alguns, talvez sua ignorância científica empobrece coisas e patrimônios tão ricos!

A informática também adicionou sua contribuição ao termo. Tanto, que os locais onde se publicam artigos, ou anúncios, ou outra qualquer mensagem, são chamados sites (saites, na pronúncia inglesa), que o português cioso da língua que Bilac considerou a última flor do Lácio, não deixa por menos – é sítio, sítio é.

Penso como meu interlocutor revoltado se expressaria, diante desse fato que o deixaria contrafeito.

Na Faculdade, aprendi algo mais sobre a expressão. Desta vez, sem o lirismo dos lagos aformosados, das piscinas de águas azuis, dos igarapés transparentes e dos vários tons de verde que os cercam. Tratavam alguns de meus professores, cada qual em sua disciplina, do estado de sítio.

Pior que ouvir, porém, foi tê-lo experimentado, durante boa parte de minha existência. Pois coisa diferente não terá sido o pesadelo que se abateu sobre os brasileiros em 1964 e persistiu tirando-nos o sono, a vida muitas vezes, a esperança para quase o sempre...

Vejam no que deu percorrer sete quilômetros, num fim de tarde com muito sol, o rio Negro logo ali, a floresta primária ou não, acompanhando meus passos, nestes tropicais espaços.

Impossível esquecer o cenho cerrado e a expressão revoltada de meu interlocutor ao ler a notícia sobre achados arqueológicos na cidade de Manaus. Chamar o local do encontro das peças de sítio, para ele era um desrespeito, uma ofensa à ciência correspondente. Não sei se depois ele terá compreendido o significado técnico de sítio arqueológico.

Manaus, 09-02-2018

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