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Informática e sociedade*


Nada é mais agradável a um professor que se ver diante de uma turma de alunos. É graças a essa gratificante oportunidade que muitos são formalmente desligados do cotidiano das salas de aula, frequentemente pela aposentadoria, mas não deixam de manter contato com ex-alunos e, muitas vezes, com turmas inteiras dos cursos de graduação. É bem o meu caso. Aposentado há quase oito anos, permaneço frequentando cursos de pós-graduação da própria Universidade Federal do Amazonas, como professor de Comportamento Humano nas Organizações, para o curso de especialização em Administração de Recursos Humanos. Também não são raros os hoje colegas que me procuram, a fim de discutir temas e problemas com os quais se defrontam, na vida profissional.

Entendo que, uma vez professor, jamais deixaremos de sê-lo. Pelo menos aqueles que, ansiosos por aprender, sabem que nada ensina mais que o contato vivo, face-a-face, com outras pessoas, qualquer que seja a idade delas. A propósito, soa-me sábia a observação do grande educador Rubem Alves, da Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP, quando diz aprender sobretudo com as crianças. Desde cedo atento para as virtudes do aprendizado decorrente do convívio com a infância. Destituídas de qualquer censura, as crianças desfrutam de grau de liberdade que se torna cada dia mais escasso, à medida que nos vamos fazendo adultos. Dessa liberdade resulta a possibilidade de responderem aos desafios que se lhes antepõem sem as amarras e os pudores próprios aos adultos.

Isso não quer dizer, porém, que não aprendamos com os adolescentes e os que já ingressaram na velhice, que o mau gosto e o marketing transformou em melhor idade ou terceira idade. Ao contrário, com todas as pessoas dessas outras faixas etárias também podemos aprender. Basta sabermos extrair delas, de uma palavra, de um gesto, às vezes de um só olhar, as mensagens que nos são dirigidas. Nesse particular, nada é mais propício, nem outro é o lugar, se não a sala de aula.

Por isso, entendo que todo professor convicto só o é pelo extremo egoísmo de que é portador. Pretendendo sempre aprender, preocupa-se em obter dos alunos o conhecimento que lhe falta ou acrescentar a ciência que acumulou ou, ainda, ver de ângulo diferente o conteúdo cognoscível que pensa ter assimilado. Para tanto, é preciso levar algo que possa ser trocado. A relação diádica então estabelecida depende, portanto, de que uns e outros, alunos e professor, tragam à liça seus próprios conhecimentos, suas experiências, preconceitos, crenças, sentimentos e convicções. Esta a razão pela qual, aprendizes eternos, professores que sabem sê-lo sempre se enriquecem ao contato com sucessivas turmas. Nem todos, porém, compreendem assim o fenômeno a que chamamos aprendizagem, nem percebem quanto a verdadeira educação depende dessa postura. Vai daí, ainda encontramos docentes que se julgam detentores de conhecimentos a que os outros não têm – nem podem ter – acesso. Pensam-se superiores aos que, ocasionalmente (e, se sabe, só temporariamente), sentam do outro lado da mesa. Esses, porém, tendem a cair no esquecimento dos alunos, a constituir mera peça burocrática, incrustada ao longo do processo educativo, apenas para preencher um espaço físico, como em qualquer linha de montagem. Jamais conseguirão, esses professores frustrados, que não lograram superar a condição de docentes, influenciar a formação e o comportamento de sua privilegiada audiência.

Alongo-me em minha exposição, e sequer arranhei o tema que a generosidade do professor ALTIGRAN SOARES sugeriu para mote de nosso encontro. É que cedo me convenci de que a visão do Mundo, das coisas, pessoas e fenômenos que o constituem determinam toda a nossa maneira de ser. Se me fosse impedido revelar-lhes minhas mais profundas crenças, no que toca à educação, o entendimento de tudo o mais quanto lhes direi parecer-me-ia prejudicado.

Postas as coisas nestes termos, permitam-se explicar-lhes como entendo o tema Informática e Sociedade, objeto de minhas próximas palavras.

Chama-se informática, segundo o Dicionário das Ciências, “O conjunto de técnicas e conhecimentos utilizados no tratamento automático da informação”. É assim que encontramos, na página 295 da obra coordenada por Lionel Salem e editada pela UNICAMP/Editora Vozes (Campinas, SP, 1995). Mistura de informação e automática, a palavra informática justificou o aparecimento de um novo campo de estudos e ações, para as quais hoje todos vocês estão voltados. De sua maior ou menor atenção aos temas e problemas da área dependerá sua formação profissional. Uma vez saídos dos bancos da escola superior, o que se espera é comportamento destinado a concorrer para a solução de questões específicas, tanto quanto para a superação dos conhecimentos adquiridos na academia, tornando-os mais ricos –e, certamente, mais econômicos. As pessoas acreditarão na possibilidade de receberem dos profissionais respostas e soluções adequadas às questões e problemas com que se defrontarem; as empresas esperarão de vocês contribuição relevante para reduzir seus custos e, sempre, aumentar seus lucros. E a sociedade – o que pode ela esperar de profissionais da Informática?

Tentarei, a partir de agora, abordar de forma direta o tema-desafio proposto pelo professor ALTIGRAN.

Sendo um conjunto de técnicas e de conhecimentos, a área em que vocês buscam formação profissional difere substancialmente daquela outra área cujos produtos, bens e fenômenos foram engendrados pela Natureza. Técnicas somente homens e mulheres são capazes de produzir. Desde que o mais primitivo pitecantropus erectus considerou vantajoso trabalhar o pedaço de pedra, para dele extrair uma ferramenta, a sociedade humana vem produzindo técnicas; com elas, enfrenta os mais variados problemas e supera inacreditáveis desafios; delas obtém meios para avançar no domínio – nem sempre sábio, é bom logo aduzir ! – da Natureza.

O conhecimento, por seu lado, é matéria a que a espécie humana sempre prestou atenção – inicialmente de forma ingênua, não-intencional, espontânea. Depois, sistematizando sua busca, também percebeu a necessidade de inventar técnicas que assegurassem sua credibilidade e fidelidade. Com isso quero dizer que o grande mérito de Descartes consistiu em elevar o nível em que a função observadora do ser humano se exerceu. Pelos sentidos chega-nos a maioria das informações que constroem nosso conhecimento. As funções de nosso cérebro processam essas informações, enquanto nossas experiências, nossos sentimentos, nossas crenças e superstições ajudam-nos a dar sentido ao que nos foi informado. Mas o filósofo francês, autor do Discurso do Método, tornou a busca do conhecimento algo superior. Pode-se questionar a racionalidade e contestar a aparente desumanização do conhecimento, pecados tantas vezes – nem sempre justas – apontados na contribuição cartesiana. O que jamais se poderá sequer diminuir é a importância de seu papel e de sua obra, nos avanços científicos e tecnológicos que a sociedade humana tem experimentado.

A Informática, assim, é resultado, como quase tudo que sucedeu Descartes na seara do conhecimento, do fato de dispormos de métodos mais ou menos seguros de fazer afirmativas e dar a elas o caráter de veracidade, verificabilidade e credibilidade que só a conduta metódica oferece. Se isso não basta, já revela o papel que as técnicas e conhecimentos associados ao tratamento das informações desempenharão, hoje - e cada dia mais.

É preciso atentar, neste particular momento da trajetória humana, para o destaque que tem sido dado ao conhecimento. Diz-s, até que poder e conhecimento são lados de uma mesma moeda; onde está um estaria o outro. Colocadas de lado certas hipocrisias e ignoradas certas jogadas de marketing, haveremos de compreender que o fazer-se humano crescentemente precisa considerar a necessidade de aumentar a apreensão e a compreensão dos fenômenos que nos cercam e de que participamos. Seres humanos que nos tornamos, menos pelo fato de termos nascido de uma mulher e um homem, mas por nossa permanência e convivência com seres semelhantes, ainda na vida intrauterina acumulamos conhecimento. Ao longo de nossa existência, não há um só segundo em que deixemos de receber informações, mais ou menos processadas, se nossos sentidos e nosso cérebro mantêm-se vivos. Conquanto nem sempre tais conhecimentos se prestem para a criação de modos e técnicas de resolver problemas, sempre eles servirão para orientar nosso próprio comportamento. De uma criança que engatinhe e tenha a frequente experiência de introduzir o dedo em uma tomada elétrica, não se espere venha a criar um dispositivo qualquer que elimine os riscos daquele gesto salutar para o desenvolvimento infantil. Sabe-se, no entanto, que o trauma daquela experiência produzirá um ensinamento jamais esquecido pela criança.

Pode-se concluir, portanto, que o conhecimento leva a, pelo menos, duas consequências previsíveis: a orientação da conduta humana e a criação de técnicas específicas. No caso da Informática, as técnicas vêm sob a forma de equipamentos e programas cada dia mais sofisticados para a coleta e tratamento das informações. Ela mesma, a Informática, não é se não o corolário de conhecimentos adquiridos em diversas áreas do saber humano, como a mecânica, a eletricidade, a termodinâmica, a teoria da informação, a linguística e, em áreas ainda mais específicas, como a resistência dos materiais, a biologia, a genética, a anatomia ...e por aí vai.

A pergunta que cabe fazer, então, é para que serve a Informática- se ela é produto da ação humana, feita na sociedade humana?

Mantenho a convicção de que o ser humano sobreviveria, mesmo que nenhuma tecnologia houvesse. Só que seus padrões de conforto e sobrevivência não teriam alcançado os níveis atuais - condenáveis não por que existem, mas por não contemplarem todos os indivíduos, onde quer que eles se encontrem. Não é, pois, condenável o avanço tecnológico, mas a impossibilidade de tornar todos os seres humanos beneficiários dele.

Assim, sobreviver não é o mesmo que viver. Sobrevida e vida, na verdade, são conceitos diametralmente opostos. Se considero que os esforços pela sobrevivência são típicos das espécies animais ditas inferiores, relaciono-os aos instintos animais, que embora presentes no ser humano, neste acrescentam-se da possibilidade de sonhar e orientar-se no sentido da realização do sonho. Ao ser humano, por conseguinte, há de ser assegurado o amplo exercício da vontade, muitas vezes oposta ao instinto primitivo, até quando a própria sobrevivência é subestimada. O exemplo dos homens-bomba parece-me suficientemente esclarecedor.

Aproximo-me do final de minha cansativa peroração, na tentativa de relacionar não só a Informática, mas o papel dos seus profissionais, na sociedade em que se inserem. Nada poderia dizer-lhes, se não desse destaque ao fato de que, antes de profissional, cada um de nós é um cidadão; antes de sermos cidadãos, somos seres humanos. Simples como enunciado, o período há que ser desdobrado, para melhor compreensão e para nos levar à conclusão que espero seja objeto de nosso debate.

Único dos animais da Natureza a contar com o raciocínio, a vontade e a capacidade de falar e inventar símbolos, o ser humano não pode dispensar-se do exercício diuturno dessas faculdades. Do cavalo e do pato não se pode pedir que assumam responsabilidades; do Homem, no entanto, isso é o mínimo que se pode fazer. Ao cavalo e ao pato se há de dar alfafa em quantidade e uma lagoa e ração; ao Homem há de ser dada toda a condição para tornar-se, sempre mais, humano. E tal cometimento só será possível se a capacidade de manifestar e realizar seus sonhos e vontades for favorecida. Fazê-lo cidadão significa assegurar-lhe o direito de opinar sobre os problemas que lhe dizem respeito e de fato influenciar as decisões correspondentes. Como profissionais, nossa presença será totalmente destituída de valor, se a ela não emprestarmos o timbre do compromisso com nossos semelhantes. Isto quer dizer: ações voltadas para a melhoria das condições de vida dos seres humanos, seja do ponto de vista estritamente material, seja sob a perspectiva intelectual, seja ainda sob o aspecto emocional.

Convém, portanto, avaliarmos quanto poderemos contribuir para tornar melhor a vida da sociedade em que nos inserimos, em função dos conhecimentos adquiridos. Haverá os que, distantes de considerações semelhantes às que venho traçando, veem na carreira profissional não mais que a oportunidade de acumular riqueza material. Muitos, aliás, orientam-se pela triste lógica do mercado, escolhendo futuro que pensam promissor, apenas pela notícia de que determinadas áreas permitem amealhar bens e engordar contas bancárias. Outros há, porém, que mesmo atentos às responsabilidades sociais exigíveis dos verdadeiros cidadãos, não conseguem ver bem clara a relação entre o que fazem como profissionais e o de que precisa a sociedade que lhes financia os estudos. Se, dos diplomados em escolas privadas não seria admissível esquecer as funções sociais de que se acham investidos, muito menos isso será possível; quando se trata de formados em estabelecimentos financiados com os recursos da sociedade, os impostos e taxas que todos pagamos – os pobres mais que os abastados.

É no plano político, aquele que envolve a manifestação da vontade humana, que devemos colocar a discussão sobre o exercício profissional, seja qual for a área de conhecimento abordada. Tudo quanto se aprende na escola, desde o nível fundamental, há de contribuir para a melhoria das condições de vida da sociedade humana. Inseridos no contexto social, a nenhum de nós cabe esquecer as consequências daí decorrentes. Se nos dedicamos a trabalhar com instrumentos que oferecem serviços capazes de tratar com mais velocidade e crescente grau de complexidade informações das mais variadas fontes, haveremos igualmente de encontrar forma de fazer desse labor o instrumento de bem-estar coletivo. Primeiro, porque seres humanos como nós são animais políticos por excelência; vale dizer: animais dotados de vontade e da capacidade de sonhar. Depois, porque partícipes da sociedade humana, temos para com esta deveres e responsabilidades resgatáveis apenas pela qualidade da contribuição que oferecermos aos nossos semelhantes.

Seria trágico que os importantes e revolucionários conhecimentos e as úteis e avançadas tecnologias produzidas pelo Homem apenas revertessem em malefícios para a coletividade. Basta lembrarmos a bomba atômica e os armamentos que mantêm intactos os prédios mas acabam com vidas humanas, para vermos quão danoso é ignorarmos as relações entre ciência e sociedade. Quando se trata da Informática, ramo em que as invenções são mais céleres e dotadas de alto grau de obsolescência, mais aumentam nossas responsabilidades. Pensem nisso! Reflitam sobre as consequências da desconsideração desses aspectos! Só assim vocês conseguirão mostrar-se autores, não-seguidores; criadores, não-criaturas; seres humanos, não-autômatos – do conhecimento e da tecnologia.

Espero ter, neste breve encontro, balizado os termos em que, logo em seguida, haveremos de manter produtivo e criativo diálogo.

Agradeço à gentileza do meu colega ALTIGRAN, que espero não ter decepcionado. De vocês, espero indagações, como aguardo palavras que me contestem ou me levem a corrigir eventuais equívocos. Como Santo Agostinho, aos que me incensam, porque me corrompem, prefiro os que me criticam, porque me aperfeiçoam.

Muito obrigado.

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*Palestra proferida no Curso de Processamento de Dados da Universidade Federal do Amazonas, dia 27/05/2003


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