Repórter - Dizem que o senhor é de esquerda. É verdade, professor?
O jovem repórter mal escondia o tremor das mãos, os olhos fixos na boca do entrevistado. Dela viria, esperava ele, uma resposta convincente. Aquela que desfaria todas as suas dúvidas de jovem exposto ao tsunami de informações que a internet faz desabar sobre todos. A resposta, posterior ao olhar compungido do interrogado, foi a mais lacônica possível:
Professor - Sim. Sou de esquerda.
R - Como ser de esquerda, professor, quando até a Rússia já não o é?
A expressão correta não escondeu a surpresa do interrogador. Gerou apenas interesse maior no repórter. Não foi desta vez, porém, que diminuiu nele a perplexidade.
P - Não só a Rússia deixou de ser socialista. A China está aí, a mostrar o mesmo.
Fosse mais velho, talvez o jornalista desabaria. Suas pernas, a essa altura, bambeavam. As mãos mantinham a sofreguidão inicial. Sua curiosidade se mostrou maior.
R - É possível ser de esquerda em pleno século XXI, professor? Quando a URSS já não existe e o muro de Berlim veio a baixo?
O entrevistador abriu, com sua pergunta, a oportunidade para a troca de papéis. Ele permitiu - poderia até dizer-se autorizou - a inversão da situação de ambos. Agora, foi o professor quem perguntou:
P - Você sabe o que quer dizer URSS? E de onde vêm a divisão e os conceitos de esquerda e direita?
R - Confesso, professor que não sei dizer o que cada uma das letras dessa sigla representa, mas estou certo de que era um grupo de países liderados pela Rússia. Quanto à direita e a esquerda, sei que antes da queda do muro a URSS representava a esquerda e os outros países eram da direita. Não é isso?
P - É e não é.
Foi a resposta seca recebida pelo entrevistador.
R - Não entendi. Por que é e não é, mestre?
P - É, porque a - tente gravar em sua memória! - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas reunia países de alguma forma, ainda que limitada, obedientes às ideias de Marx, Engels e Lênin. Aqui e acolá, umas poucas nações tornaram-se, como se dizia à época, satélites da URSS. A grande maioria dos estados do Ocidente tinha os Estados Unidos da América do Norte como o sol em torno do qual girava. O Brasil desde sempre. O que, a rigor, não era novidade. Como puta de lupanar, dividimos a cama com Portugal e Inglaterra, embora resistentes ao assédio de franceses e holandeses.
Sim, professor, mas o que tem isso a ver com a esquerda e a direita?
Nada, e tudo, ao mesmo tempo. A história não se faz em saltos, meu caro. O presente é resultado de muitos ontens; o futuro é construído todo o tempo, mesmo neste momento em que estamos aqui conversando. Você algum dia ouviu falar da Revolução Francesa?
Mais uma vez os papéis de um e outro foram invertidos.
R - Sim, ainda me lembro que o professor de História falava muito de um tal de Robespierre. Mas havia outros, como o Marat, o Diderot, o Desmoulins, o Roger de L' isle. Não é verdade, professor?
P - Que esses aí existiram, parece não haver dúvida. Qual o papel de cada um na Revolução Francesa é outra coisa. E como a História andou, após esse fato, determina a nomenclatura que se usa para classificar alguém no espectro esquerda -direita.
R - Não entendi, professor. Pode esclarecer esse ponto?
P - Pois é, meu caro. Ia a meio a crise, o rei Luis XIV, de cuja mulher você talvez tenha ouvido falar mais que dele mesmo, resolveu convocar os Estados Gerais - o coletivo composto por nobreza, clero e representantes do povo francês. Ao longo dos trabalhos desse coletivo, verificou-se a posição geográfica de cada grupo, em relação à mesa que dirigia os trabalhos. A posição assumida por esses grupos na discussão dos temas e problemas propostos então, permitiu denominar esquerda e direita. Estes, em geral, acompanhando as palavras de ordem e apoiando os poderosos - corte e clero; os outros, opondo-se ao poder.
R - Quer dizer, professor, que sempre os de esquerda opõem-se ao poder?
P - Não, se o poder é exercido pela esquerda. Mas isso não é tão simples assim.
R - Como, professor?
P - Até agora, falamos da Revolução de 1789, uma porta que nos fez entrar na que chamamos Idade Contemporânea.
R - E o que isso tem a ver com os conceitos esquerda e direita?
P - Sigamos em frente, sem perder de vista as balizas da estrada! A grande - chamemos assim - descoberta da Revolução Francesa foi a divisão entre os proprietários dos meios de produção, chamados burgueses, e os que só têm de seu a força do trabalho. Patrões e empregados, facilitemos as coisas.
R - Mas isso já não vinha do mercantilismo?
P - Sim, mas a acumulação característica deixou clara a diferença entre o capital e o trabalho. Muito das ideias defendidas pelos revolucionários franceses tinham a ver com esse novo tipo de relação social. A Revolução, no entanto, é que transformou a percepção desse fenômeno e o fez fundamento das novas reivindicações.
R - Já sei aonde o senhor quer chegar. Mas não tenho como evitar dizer-lhe que o capital, acumulado, responde por grandes avanços tecnológicos e pela oferta de empregos. Não é assim, professor?
P - É assim, mas não tão assim.
R - Não entendi.
P - Explico, já. Quantas guerras ocorreram, desde 1789 até hoje? Quantos novos estados nacionais surgiram e como resultado de quê, no mesmo período? Quanto se tem produzido? Qual a distribuição da riqueza gerada em razão desses avanços que você oportunamente destacou? Se você vê sentido na globalização e avaliar a desigualdade social que a tem acompanhado, ficará mais perto de entender porque esquerda e direita existem. Fiz-me entender?
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