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Cento e vinte anos para não deslembrar

IV- O Brasil, no Século XX


Muito se tem estudado da Guerra de Canudos. Disso tem resultado copiosa literatura, dentre ensaios, teses, dissertações, artigos acadêmicos e romances, destes sendo o mais conhecido o do peruano Mário Vargas Llosa, La guerra del fin del mundo[1].

Resta, feito o retrospecto acima, destacar alguns aspectos sociais e econômicos reveladores da proximidade e da distância, ao mesmo tempo, da pregação e da luta de Conselheiro e da realidade campesina deste Pais, agora listado dentre os dez mais ricos do Planeta.

A Primeira República, que vigeu de 1889 a 1830, encerrou quando Getúlio Vargas chegou ao poder, inaugurando o que se chama Revolução de Trinta.

De 1930 a 1945, período em que Getúlio Vargas se manteve no poder, ao lado de decisões restritivas dos direitos individuais (de tom nitidamente autoritário) foram introduzidas certas medidas populares, que podem ser simbolizadas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Enquanto os subversivos eram vítimas da ação implacável dos esbirros e tribunais de exceção, os operários viam amenizada a exploração de sua força de trabalho. Era a tentativa de inserir o Brasil num novo quadro de divisão internacional do trabalho e fazê-lo protagonista no processo de desenvolvimento capitalista em curso em escala internacional.[2]

Duas dessas manifestações de caráter econômico podem ser mencionadas: a criação da Petrobrás e da Companhia Siderúrgica Nacional. A primeira, destinada a explorar o petróleo, desde a prospecção até a distribuição, em caráter monopolístico. A CSN, dedicada à indústria pesada.

Davam-se os primeiros passos no intenso processo de urbanização das capitais brasileiras, sobretudo. Tal processo, coerente com a forma entendida como desenvolvimento econômico, aprofundou-se nas últimas décadas, produzindo consequências semelhantes a experiências efetivadas em outros países. Dentre essas consequências, o êxodo rural, a negligência quanto à produção de alimentos para a população brasileira, o interesse por conquistar crescentes fatias do mercado internacional, os conflitos no campo e a repressão a movimentos de resistência popular.

Passado o hiato democrático (1946-1964), instaurou-se no País nova ditadura. Desta feita, o ensaio autonomista da Era Vargas fez-se substituir pelo alinhamento subordinado às políticas do governo norte-americano. Então, vimos o bolo crescer[3], ao mesmo tempo em que a tortura foi feita instrumento de convencimento e a delação de divergentes era duramente punida. Ás vezes, com a morte nas masmorras do sistema.

Do ponto de vista econômico, nada há que tenha beneficiado os brasileiros mais pobres. Ao contrário, à riqueza acumulada pela ínfima minoria dos capitalistas (?) nacionais, muitos dos quais associados minoritários dos capitais estrangeiros, correspondeu o crescimento da pobreza.

Passado o período autoritário (1964-1985), aprofundou-se a inserção subordinada da economia brasileira aos grandes capitais, muito por causa do processo de globalização em curso.

De novo o campo se viu envolvido nas novas formas de luta de classes.

Agora, o interesse por produzir para exportar veio acompanhado da introdução de inovações tecnológicas no campo, e as ameaças ao emprego e à remuneração dos trabalhadores (no campo, mas igualmente nas cidades) se fizeram mais intensas.

Daí podermos dizer que a luta iniciada por Antônio Vicente Mendes Maciel ainda não se destituiu de suas causas fundantes.




V- O Campesinato Brasileiro no Século XXI


Especialistas em economia agrária e nos problemas dos camponeses veem cada dia mais distante a oferta de oportunidades aos habitantes das cidades do interior do País. Se há algumas que apresentam crescimento econômico, nelas não se constata a superação dos problemas sociais próprios ao clima de desigualdade reinante. A violência grassa e estabelece certo pânico nos habitantes das cidades, não apenas nas de maior porte, sabido que cidades médias e algumas pequenas cidades espalhadas pelo País experimentam igual sensação.

No que concerne à paz no campo, estamos anos-luz de alcança-la.

Basta olhar os números colhidos pela Comissão Pastoral da Terra. Neles está registrada a verdadeira realidade vivida pelos que moram e – quando conseguem emprego – nele trabalham.

O conflito, longe de parecer com o de que participaram da Guerra de Canudos, tem várias facetas, nenhuma delas atribuível ao carisma ou fanatismo, menos ainda à hostilidade à república em ação.

O LEMTO – Laboratório de Estudos dos Movimentos Sociais e Territoriais informa serem quatro as características de nosso desenvolvimento agrário:


1. A persistência da concentração fundiária;

2. A crescente internacionalização da agricultura brasileira;

3. A transformação nas diretrizes produtivas da agropecuária;

4. A violência, a exploração do trabalho e a devastação ambiental.


Nesse caldo de cultura, não surpreende a geração de conflitos, envolvendo crescentes parcelas das populações interioranas e abrangentes de diversas questões. Pelo menos três delas – conflitos relativos à terra; conflitos de caráter trabalhista; conflitos pelo acesso à água – têm merecido atenção da Comissão Pastoral da Terra. Outros, cuja dose de dramaticidade parece menor, também ocupam os estudiosos da CPT.

O modelo escolhido (a exportação de bens de consumo primários) impõe processos de exploração exigentes de cada vez maiores áreas. Também exige a modernização dos equipamentos e a desvalorização do trabalho humano. A concentração fundiária, portanto, assegura a competitividade das empresas agropecuárias e faz com que ainda se registrem atos criminosos, como o que consiste em queimar as plantações e as casas de camponeses dedicados à agricultura de subsistência.

De igual modo, o uso de tecnologia moderna torna o trabalho manual quase totalmente dispensável, o que concorre para expulsar de seu habitat os caboclos e camponeses de todas as regiões do País. Junte-se a isso a predação exigida para a produção agrícola em extensas áreas – e logo se terá pintado o dantesco quadro com o qual convivem os homens do campo brasileiros, 120 anos depois do sacrifício de Antônio Conselheiro. E os pregadores andam escassos...salvo os que pretendem disseminar a necessidade egoística do enriquecimento apenas material. Esses, se veem nas ruas, nas telas de televisão e em templos erguidos a pretexto religioso.

Os números relativos à violência no campo, seja pelo assassinato de lavradores, líderes dos camponeses, religiosos comprometidos com a causa campesina; seja pela prática de expulsão de suas terras (de que a queima de suas propriedades é atividade recorrente e preparatória) ou a ameaça contra a vida deles e a pistolagem que os assedia revelam a dramaticidade da situação.

Documento produzido pela Comissão Pastoral da Terra registra a ocorrência de 174 conflitos relativos à terra, em 2000. No ano 2006, marcavam-se 761 conflitos. Chegou a quase 1.080, a cifra apurada em 2016. Cerca de 6 vezes, em relação ao último ano do século XX.

O conflito trabalhista, no mesmo período, tem os seguintes números:

2000 2006 2016

Trabalho escravo 21 262 68

Assassinatos 1 3 61


Percebe-se com clareza a índole dos processos de exploração do campo, em todo caso ofensiva ao direito à vida e à paz, que se pensava conquistada pela totalidade dos indivíduos, nas cidades e nos campos.

Há, também, conflitos originados pela busca de acesso à água. Embora recurso natural abundante em quase todo o território nacional, ainda assim existem pessoas privadas de sua obtenção. É o que revelam os dados referentes ao período 2002(14 conflitos) e 2006(45 conflitos).


[1] A primeira edição, em espanhol, foi publicada em 1981. A Editora Francisco Alves publicou, no ano seguinte, a primeira edição em português. [2] Quem queira ler mais sobre esse período e conhecer os mais importantes fatos políticos do Brasil, desde o Segundo Império, até a Constituição de 1988, deve ler ORLANDO SAMPAIO SILVA (A vontade de potência, Chiado Editora, Lisboa, Portugal, 2012). [3] Expressão muito ao gosto dos que aprovam a desigualdade social e entendem necessário tornar os ricos ainda mais ricos, para só depois dividir o resultado do trabalho coletivo. Ainda assim, nos mesmos moldes anteriores. Que ainda vigem.

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