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Viver para aprender

Durante a ditadura de 1964, a covardia e a cumplicidade das lideranças políticas, intelectuais e empresariais (feitas sempre as devidas exceções) convocaram, involuntariamente embora, outras instituições a engajar-se na luta pela redemocratização do País. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB; a Associação Brasileira de Imprensa, ABI; e a Ordem dos Advogados do Brasil- OAB – acrescentaram prestígio e admiração às suas conquistas anteriores, suprindo a omissão dos agentes públicos tidos como representantes da população. Enquanto eram cassados políticos desavindos com o poder, torturados, mortos ou feitos desaparecer alguns outros, tornou-se fundamental e decisiva a participação dessas instituições na retomada da democracia rompida pelo golpe de Estado que derrubou Presidente eleito constitucionalmente. De novo nos encontramos face a processo anunciador da culminância de um período que tem mostrado quão arriscada é a superveniência de uma farsa – se é que a História só se repete sob essa forma. Com a agravante de que a resistência já não conta com a participação efetiva de todas as organizações democráticas do passado. Ainda bem que se multiplicam as tentativas de impedir o retorno do passado infausto, de que reunião virtual organizada e promovida pelo SARES (Serviços de Reflexão e Ação -10º Fórum Social Pan-Amazônico- Amazônia: Desafios do Século XXI) é exemplar. Durante o evento, o desafio trouxe à baila várias perspectivas de abordagem da questão, todas elas pondo em evidência as formas como vêm sendo tratados o ambiente e as populações instaladas na maior porção do território nacional. Agravados em relação a períodos anteriores da História, os desafios correspondem a problemas os mais diversos, desde o que se refere à invasão e destruição da floresta, até os modos de buscar soluções que dizem respeito às questões econômicas. O que pude extrair, após atenta audiência às exposições, deixa-me com a certeza de que enfrentamos hoje problemas decorrentes sobretudo do avanço da cupidez monetária (dizer econômica não seria de justiça) sobre as potencialidades da região. Uma primeira observação a fazer relaciona-se à consciência dos expositores no que toca a responsabilidade social de cada cidadão, especialmente daqueles que chegaram ao ponto atual de suas posições políticas e administrativas. A grande maioria, no caso brasileiro, beneficiária da aplicação de dinheiro público em programas de educação, saúde e tantas outras atividades que atribuem dignidade à vida humana e a tornam diferenciada da sobrevivência meramente animal, encontradiça nos animais que nossa arrogância diz inferiores. Por isso, são intelectuais que se dedicam a formular respostas (ou tentativas de) aos desafios que o século em curso impõe a todos. Só esse já seria traço exigente do reconhecimento da iniciativa do SARES, por todos os títulos merecedora do aplauso dos que não veem a Amazônia apenas como fonte do pobre enriquecimento que se reduz ao acréscimo permanente e absurdo do patrimônio privado. Junto com esse enriquecimento - se não ilícito, injusto -, a reivindicação de transferência total da riqueza por todos construída para as mãos de uns poucos. É o que se tem visto.

Destaco alguns pontos capazes de suscitar, a meu juízo, profunda reflexão dos cidadãos interessados em contribuir para dar respostas sustentáveis aos desafios apresentados.

Ouvi de Marilene Corrêa frase de forte impacto, pelo que pode determinar no espírito dos que se proclamam pessoas de bem: devemos ter tolerância zero para com o desenvolvimento predatório. A ex-reitora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) avança, embora não peça nem exija mais que o cumprimento de determinação constitucional, qual seja a redução da desigualdade, pessoal e regional. Não ficam nesses dois e fundamentais pontos as recomendações de nossa colega da UFAM. Marilene aponta as ilegalidades cometidas pelos que invadem a Amazônia, denunciando inclusive a perversidade de políticas públicas que fazem vista grossa à ação de delinquentes, não raro premiando as ações nefastas.

De Marcus Barros, por exemplo, ouvi restrições à forma como se tem procurado explorar a região e seus habitantes, ratificação do que a expositora anterior dissera sobre o caráter predatório das atividades denunciadas. Resumindo: o ex-reitor da UFAM e ex-Presidente do IBAMA não admite – como o faz o brasileiro tocado pela responsabilidade social – o desenvolvimento a qualquer custo. Marcus ainda faz, como especialista, menção à relação doença/desenvolvimento, valendo-se do conhecimento acumulado como médico infectologista.

Não é desprezível a contribuição da professora Alícia Noronha, do Centro Universitário Nílton Lins. Com grande senso de oportunidade, ela adiciona às perdas ambientais e humanas resultantes das políticas públicas que vitimam a Amazônia as perdas causadas pelo assassinato sistemático de lideranças indígenas (ou não), resistentes à invasão do território amazônico.

José Alcimar, professor da UFAM e ex-Presidente da ADUA- Seção da Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES) aponta a importância da adoção de políticas públicas com alto peso ambiental, que a extensão, as potencialidades e a abordagem atual justificam.

Vem de Egydio Schwade, indigenista lúcido e participativo, a advertência. Não se pode confiar em falsos deuses. Também lembrou, esse homem público sem mandato, a conveniência de atentar para um registro importante da História: os primeiros cristãos eram vistos pelo poder romano como ateus. Não deixa o respeitado estudioso e militante das melhores causas de vislumbrar quanto a esperança pode vencer o modelo excludente de desenvolvimento praticado na região amazônica.

Marilene Sateré Mawé deixa marcada uma frase que todos gostaríamos de ver repetida pelos que se proclamam democratas: nada para nós, sem nossa participação. Talvez mais que muitos que se dizem conhecedores de Política e Direito, a afirmação da líder indígena coloca em termos crus, e por isso mais próximos da realidade desejável, o conceito de democracia. Uma interpretação tão contundente quanto singela do mais alto de todos os princípios inscritos em nossa Constituição Federal. Uma lição que ainda não foi aprendida.

Rosimeire Mekina-Eta leva-me a imaginar terem os indígenas enorme poder de síntese. É dela, igualmente, uma frase que ainda não conseguiu mover a maioria de que se sustenta a democracia: o futuro depende de cada um de nós. Certamente, ela não o disse por que acha a frase destinada a produzir estrondoso efeito. Disse-o, estou certo, porque foi elaborada segundo o aprendido na vida comunitária de seu povo. Outra lição a que ainda são hostis resistência e ódio.

Enfim, e para terminar: agradecer ao SARES, à jornalista e professora Ivânia Vieira, organizadora, e à coordenadora do evento, Socorro Papoula é muito pouco. Dizer que elas prestaram grande serviço à Amazônia e seu povo é o mínimo que se há de fazer.

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