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O concreto e o abstrato

Mais se aproximam as eleições, mais se agrava a crise em que o Presidente da República se tem empenhado, desde 01 de janeiro de 2019. Quanto mais distante ele vê a probabilidade de manter-se no Planalto, mais aumenta o tom de suas ameaças. Quando imagina ganhar notoriedade além daquela que advém das denúncias relativas às suas ações lesivas ao País e à cidadania, leva o Brasil ao ridículo. Não foi outra coisa o lamentável episódio da última segunda-feira, em que reuniu dezenas de embaixadores estrangeiros, para enxovalhar as leis da nação que ele deveria defender. Essa a figura patética do nominal comandante-em chefe. Quando se aproxima o pleito, aproximam-se as famílias brasileiras de contar o morto número 700.000, sem que se possa afastar o (des)governo que ele preside da responsabilidade por boa parte dessas mortes. O desemprego persistente, a despeito das novas vagas precarizadas no mercado de trabalho; a contribuição dos salários reduzidos, na contabilidade oficial; a transferência a preço de banana do patrimônio público; a violência grassando em todas as regiões, com a agravante da motivação política, fruto genuíno cuja sementeira está no Planalto; a desindustrialização acelerada, a agressão aos povos indígenas, quilombolas, LGBT+QIA não esgotam o cenário construído desde o golpe de 2016. Mesmo multiplicado por mais de 20 o número que o então deputado federal considerou meta desejável de mortos parece não ter bastado. A permanente ofensiva ao Estado Democrático de Direito se faz cada dia com maior vigor, e ninguém garante que a reação de algumas entidades da sociedade civil e de algumas agências oficiais conseguirá estanca-la. A conduta e as proclamações antidemocráticas não são novas. Ao contrário, vêm de muito tempo, desde quando ainda seria possível dar como certo seu estancamento. Para isso, teria sido necessário vencer certo medo presente nas duas casas do Parlamento, tanto quanto em outras instâncias do Poder Judiciário. Tal medo refere-se à postura dessas autoridades diante da ação e militância de membros das forças armadas na vida política, algo que a Constituição veda. Um coturno, podem pensar assim alguns deputados e senadores, tanto quanto magistrados de todas as instâncias, vale mais que uma Constituição. No caso específico dos magistrados, eles sequer se dão conta - ou, se se dão, simplesmente optam pelo que lhes parece mais pessoalmente benéfico - de que as vozes a serem ouvidas por eles, mais que todas, estarão no que disseram e divulgaram importantes e imortais pensadores. De Montesquieu eles saberiam da divisão tripartite de poderes, aquilo que os norte-americanos chamam sistema de freios e contrapesos. Em Voltaire talvez os sensibilizasse a expressão que, a meu juízo, sintetiza a democracia: posso discordar totalmente do que dizes, mas daria minha vida para defender teu direito de dizê-lo. Jean-Jacques Rousseau, em seu O Contrato Social, lhes diria que homem nenhum nasce mau. Produtor e produto da sociedade, o homem submete seus caprichos, sonhos, taras e vícios ao pacto que permite a construção e mantém a sociedade razoavelmente civilizada. Só isso, a compreensão desses valores fundamentais e sua prática evitariam chegar-se à situação atual, Em que a mentira gera abstrações perigosas e se tenta impor como verdade absoluta e unívoca. Daí as fake-news e as ofensas ao Estado Democrático de Direito. O que é concreto deixa de o ser. O que não existe passa à condição de fantasma a ameaçar toda gente. Como o golpe.

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