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NATAL 2020 E O SIMPÓSIO DE BELA VISTA SOBRE A VERDADE: OU NOTAS DE UM BRASIL EM RUÍNAS

José Alcimar de Oliveira *


Et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis (Jo 1,14)


01. Localizada no centro da Amazônia Ocidental, no Município de Manacapuru, hoje integrado à Zona Metropolitana de Manaus, a pequena Comunidade de Bela Vista me acolheu em 15 de setembro de 1956. O primeiro de 12 filhos do casal de migrantes cearenses, Ana Nilda e Marcondes, que em 1955 partiu da miséria seca de Jaguaruana para se estabelecer na Colônia Agrícola de Bela Vista, às margens do caudaloso Solimões. Mesmo à margem da história, nasci num ano em que o Brasil vivia a euforia do desenvolvimentismo, sempre sob as rédeas da autocracia burguesa. Nesse ano Juscelino Kubitschek dava início à construção de Brasília e Guimarães Rosa publicava seu Grande sertão: veredas, presidido pela teologia jagunça de Riobaldo. Nem pelo menor favor da psicografia poderia imaginar que nasci no ano da invasão da Hungria pela então URSS ocorrida 11 dias antes de respirar os ares de Bela Vista. Meses antes, ocorrera o XX Congresso do PCUS, convocado por Khrushchov, que tornou público ao mundo a política nada santa do ex-seminarista Stalin. Seu culto foi definitivamente arruinado e ele, no túmulo desde 1953, tentou ainda mais se proteger, descendo o que podia até o fundo da história. Meu nascimento anônimo foi antecedido pela morte de Brecht, em 14 de agosto de 1956 e pelo centenário do nascimento do Freud, completado em 06 de maio do mesmo ano.

02. Bela Vista e eu continuamos anônimos e meu esforço potâmico é lá viabilizar o cruzamento hidrográfico entre os rios Solimões, no Amazonas, e Jaguaribe, no Ceará, onde vivi cinco anos de minha infância, entre 1961 e 1966. Algo não comum na história das migrações ocorreu com meus pais: seis anos depois de sua chegada ao Amazonas fizeram a viagem de volta para Jaguaruana. Entre a vida miserável às margens de um rio farto e para eles desconhecido preferiram voltar à miséria conhecida do maior rio seco do mundo. Disse Ortega y Gasset que o homem é ele e suas circunstâncias. Marx já o dissera de outro modo lá na Sagrada família. Por força dessas circunstâncias, mais estruturais que circunstanciais, iniciei meus estudos primários em 1963, com a professora Ana Valente, ainda viva, numa escola rural e entre carnaubais no Alto da Catinguinha, no município de Jaguaruana, CE. Dedico à professora Ana Valente esta parábola natalina. Foi com ela, de fato, que iniciei meu doutorado, concluído em 20 de dezembro de 2011, no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas. Manacapuru (AM) e Jaguaruana (CE), Bela Vista (no Solimões) e Alto da Catinguinha (no Jaguaribe), mais do que circunstâncias ônticas e contingentes, são constituintes ontológicos e necessários de minha trajetória ontológico-social.

03. Por força das razões acima expostas, fiquei em dúvida quanto à definição do local para abrigar o Primeiro Simpósio sobre a Verdade, se no Alto da Catinguinha, em Jaguaruana, ou em Bela Vista, em Manacapuru. Por ter sido a minha manjedoura cabocal, e há 54 anos viver no Amazonas, desde que definitivamente meus pais para cá voltaram em 1966, com mais quatro irmãos (Fatinha, Leudo (+), Dulce e Loura), tomei a decisão monocrática de promover em Bela Vista o Primeiro Simpósio sobre a Verdade. Para além de razões pessoais e afetivas pesou a relevância estratégica da Amazônia (indígena, ribeirinha e caboca) diante da predatória e acelerada investida do sociometabolismo do capital sobre a terra e o ser social da Hileia. Houve dificuldades quanto à definição da data e dos convidados. Quanto à data, prevaleceu o dia 25 de dezembro. Sem a mediação de Edgar Morin, dificilmente teria havido consenso. À beira de completar 100 anos, e com uma trajetória intelectual que vai do marxismo à teoria da complexidade e por ter, com o apoio de Gramsci, incluído Jesus de Nazaré entre seus filósofos, Morin me ajudou a definir e aprovar o dia 25 para a realização do Simpósio. Mais do que isso, foi dele a proposta de que a fala de abertura fosse de Jesus de Nazaré, mesmo sob protesto de fariseus, doutores da lei e fundamentalistas de vários espectros, católicos, evangélicos, inclusive de alguns grupos trotskistas e stalinistas.

04. Houve acordo sobre o tema. Inclusive mereceu elogio a ideia de simpósio, por combinar, desde a Grécia Antiga, banquete e discurso, festa e debate. Nietzsche, para quem pensar é sempre uma festa, e interessado em conhecer Bela Vista, foi um dos mais entusiastas. Já tinha um texto pronto e estava decidido a investir contra a tradição socrática e seus descendentes, que segundo ele, envenenaram a Filosofia com a vontade doentia de verdade. O mal-estar foi logo visível. Platão, Aristóteles, Paulo Apóstolo, Agostinho, Tomás de Aquino, Kant e Hegel ficaram reticentes. Foi de Espinosa e Marx a mediação fundamental para que o tema da verdade, objeto do Simpósio, não excluísse nada do que fosse humano. Ao cumprimentar Marx e Freud e malmente acenar para Tomás de Aquino e Descartes, Agostinho manifestou interesse em fazer uma fala sobre a mentira. Numa conversa reservada, Protágoras, meio sorrateiro, adiantou que Agostinho estava armado com dois textos sobre a mentira, o segundo corrigindo o primeiro. O De mendatio (Sobre a mentira) e o Contra mendatium (Contra a mentira). Soube-se, ainda pelos artifícios de Protágoras, que Agostinho apresentou os dois textos a Marx e Freud, deles não recebendo senão indiferença. Na verdade, por força de um pensamento dialético que conjuga democracia e revolução, foi de Leandro Konder o apoio mais efusivo que Agostinho recebeu para que apresentasse os dois textos sobre a mentira. Ressaltou a atualidade do tema agostiniano para o contexto brasileiro de 2020, quando a mentira estrutural mobiliza todas as armas do arsenal obscurantista para derrotar o pensamento dialético. Numa rápida observação dirigida a Agostinho, Konder afirmou que, a seguir apartado da verdade, o que nos espera é um Brasil em ruínas.

05. Mesmo tendo sido convidado a fazer a fala magna na abertura do Simpósio, sobretudo pela data festiva de seu nascimento, Jesus de Nazaré teve que receber um nihil obstat de uma Comissão formada por Tomás de Aquino, Hegel, Marx, Sartre, Mészáros, Morin e Habermas (os dois últimos ainda vivos) sob a alegação de que o Nazareno nada havia escrito e nos evangelhos sobre ele, da autoria de Mateus, Marcos, Lucas e João, o tema da verdade carecia de estatuto filosófico. O mal-estar cultural foi superado quando Morin, acompanhado de Sócrates – que também nunca cuidou de dar forma escrita ao seu pensamento e menos ainda registrar no Lattes sua produção intelectual – apresentou aos demais membros da comissão ad hoc um breve registro feito pelo evangelista João, e entregue em mãos pelo próprio ao pensador francês, sobre uma de suas incontáveis falas nas terras palestinenses. Era um escrito sobre a verdade, sobre o caminho da verdade e sobre a verdade em proveito da vida. Hábil exegeta, mesmo sem formação acadêmica reconhecida pelo MEC (que hoje é apenas ME, pois aboliu a Cultura e trama contra a Educação), o jovem evangelista João, ele mesmo, dirigiu-se à douta Comissão e, com ares de um Platão em defesa de Sócrates, afirmou que Jesus de Nazaré é o único caso conhecido na história de um Deus que se definiu como Caminho e não como doutrina: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. O próprio Marx, que nunca havia refletido sobre esta passagem bíblica, sorriu discretamente para João e disse: – estranho, nunca me passou pelas barbas a ideia de que uma divindade se definisse como método (caminho, em grego).

06. Desse episódio nasceu uma amizade entre João e Marx. Segundo um diálogo colhido por Protágoras, nos dias em que se prepara o grande Simpósio, Marx teria confessado a João que muito lhe incomodava ter seu pensamento convertido em doutrina. Certa vez interrogado se ele era marxista, respondeu ao interlocutor que se por marxista ele compreendia um quadro doutrinal, rejeitava tal definição. Para aumentar ainda mais a rejeição marxiana às formas doutrinárias e míopes de pensamento, Lafargue, genro do Mouro de Trier, e seguramente sob influência maldosa de Trotsky, mostrou ao sogro o projeto de criação da Escola Stalinista de Baixos Estudos (ESBE), uma proposta laicizada, inspirada na doutrina testemunhal dos seguidores de Jeová e destinada a diluir e resumir a tradição dialética do pensamento em doutrina catecumenal, na forma de perguntas e respostas. Por intermédio de João, Marx mostrou-se interessado em conversar com o Nazareno e, se em meio à militância e produção teórica ainda lhe sobrasse algum tempo, pretendia revisitar a literatura do comunismo vivido pelos primeiros cristãos. Sem nada dizer ao Nazareno, João entregou a Marx o relato (uma separata dos Atos dos Apóstolos) escrito por Lucas sobre o primitivo comunismo cristão. Marx passou a cópia para Engels e é provável que nunca se debruçou sobre aquele escrito.

07. A verdade é que o Simpósio de Bela Vista sobre a Verdade, a iniciar-se em 25 de dezembro de 2020, com término imprevisto para o dia 31 de dezembro deste ou do próximo ano, e a considerar as heurísticas dificuldades já postas em curso nesses dias que o antecedem, já se anuncia como a mais copernicana das revoluções do pensamento e da práxis sobre o tema da verdade. O que vai aqui relatado está longe de expressar o que já se seguiu e seguirá nesse devir que geografiza a Hélade na riqueza da diversidade de povos indígenas e populações tradicionais que habitam a vastidão verde e aquática da Hileia. As informações se atropelam. Há pouco fui informado que Simone de Beauvoir, presença até então não confirmada no Simpósio, quando soube que mais uma vez a fala das mulheres permanecia sem representação, apressou-se, desde Paris, a convocar, juntamente com Rosa Luxemburgo e outras Rosas não menos vermelhas, uma representação feminista, cabana e indígena para demarcar que a verdade é e deve ser o modo de ser do real. Segundo se soube, Beauvoir chegará a Bela Vista acompanhada de Carolina Maria de Jesus e Elizabeth Teixeira. Por informação a mim repassada por Protágoras, Simone, que esteve em Manaus, juntamente com Sartre, em 1960, não deseja passar pela capital baré nesse 2020. Por fim, duas últimas informações: 1) não foi possível manter a fala conjunta de Hegel (a verdade é o todo) e Adorno (o todo é o falso) sobre a verdade; 2) por pressão da mulheres e manifesto acordo do Nazareno, a fala de abertura será feita por três mulheres: uma indígena do Povo Mura, a ser indicada pela comunidade Autazes, Carolina Maria de Jesus e Elizabeth Teixeira.

A todos e todas, um Natal com renascimento do que nos humaniza tal como Jesus de Nazaré humanizou Deus ao construir sua morada entre nós, desde a Palestina.

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* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no dia 25 de dezembro do ano coronavirano de 2020.






































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