Marcus Lacerda*
Durante a pandemia de Covid-19, todos passamos a orar mais. Durante muito tempo eu orei pelo Ministério da Saúde, para que fosse iluminado e conduzisse a pandemia de forma a não permitir a morte de tantas pessoas. Talvez eu não tenha sido firme o bastante nas minhas preces. O que se viu, ao final, foi uma compulsão em revisar conceitos mais do que consolidados.
A revisão de meias verdades é necessária, não há debate sobre isto, mas há de se convir que o debate deve concentrar temas ainda controversos. Discutir de tempos em tempos sobre benefícios e malefícios do ovo, da carne vermelha e do vinho, na nossa dieta, é ampliar o que sabíamos, à luz das novas evidências. Entretanto, em vez de ampliarmos nosso conhecimento, o que vimos foi uma devassa total nos conceitos mais sólidos, na área de doenças infecciosas transmissíveis. Questionamos se máscaras funcionavam ou não e se vacinas funcionavam ou não. Em resumo, não houve ampliação do conhecimento, houve uma retração dele.
Esta técnica de distração, questionando obviedades para esconder a incerteza e o medo sobre o novo, não é inédita. É como deixar um boi doente e sangrando em um ponto do rio, para que as piranhas o devorem, sem atentar para o imenso rebanho que cruza as águas seguras, à montante.
Tendo em vista as recentes denúncias de corrupção no Ministério da Educação, tenho orado agora por eles. Meu foco tem sido mais as questões ideológicas do que as questões do mal uso do dinheiro público em si. Rogo para que não suceda ali o que passou no Ministério da Saúde. Rogo para que não se discutam as obviedades e certezas consolidadas, o que poderia ser trágico para um povo em formação e em processo de desenvolvimento econômico e intelectual.
Tenho muito medo de que novas cartilhas e livros didáticos passem a questionar a vantagem do bipedalismo. Sob algum pretexto estapafúrdio, pode surgir a ideia de um retorno ao ser humano quadrúpede, com a mesma convicção que algumas pessoas acreditam que o retorno da monarquia no Brasil pode nos salvar. Mais medo ainda de que se questione a relevância de nossos polegares, que permitiram a construção das ferramentas. É importante lembrar que na urna eletrônica o dedo mais utilizado para confirmar o voto é o indicador, o que pode levantar a suspeita de irrelevância do dedo polegar.
Tenho medo profundo de questionamentos como estes, o que não me surpreenderia, já que a teoria da evolução e a necessidade de amamentação dos mamíferos ainda passa por permanentes debates. E, a partir daí, corremos o risco de ter outras garantias sendo revisitadas, como as teorias da gravidade, da relatividade, e os benefícios da roda.
Há trabalhos muito bem-feitos mostrando que a oração pode sim alterar a recuperação de pacientes graves, internados em UTI. É certamente preciso ampliar nosso conhecimento sobre os tele mecanismos envolvidos na prece, mas seu benefício não pode ser desprezado. Assim, rezo, por convicção mais científica do que religiosa, e acho que é o momento de orarmos todos pelo Ministério da Educação.
Sanadas as preocupações com esse ministério, a partir de agosto de 2022, quando começa o período eleitoral, passamos todos a orar pelo Supremo Tribunal Eleitoral, e por todos os candidatos. Se esta oração for dedicada, é possível que tenhamos um país em que garantias e certezas conquistadas não sejam colocadas em xeque. Será então tempo de orar pelas mudanças estruturais que consigam nos livrar da miséria. Amém!
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*O autor é articulista (semanal) de A Crítica, Manaus, AM. Integra o quadro de pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado, da mesma cidade. Teve influente participação nos estudos científicos relacionados ao tratamento da covid-19, quando mais grave era a crise sanitária.
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