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Golpeados - alegremente golpeados

A sociedade vai-se dando conta de que está golpeada, sem que nada mais precise ser adicionado à comédia de horrores em ostensiva e escandalosa apresentação. Os mais argutos observadores, outros nem tanto, têm mencionado o terrível clima e as nuvens que impedem um olhar minimamente otimista. Esperar que as coisas mudem, a tal ponto que o oxigênio pelo qual ainda nada se paga seja depurado e penetre pelos nossos pulmões fazendo bater mais forte e esperançosos nossos corações, mais uma utopia. E, como tal, reveladora da miséria humana, a manifestar-se com as mais desagradáveis e sujas cores do cenário. O que vier mais à frente – e não se espere, sadiamente, que seja diferente – interessa menos do que avaliar o que foi deixado para trás. Sonhos, ilusões – por que não? -, relações fraternas, respeito mútuo, e tudo o mais de que se acompanham, sucumbem à voragem de apetites que nem o mais bravo e selvagem dos animais seria capaz de perseguir. O texto publicado ontem pelo excelente cronista Gregório Duvivier praticamente resume o sentimento e as expectativas do brasileiro que se pensa membro de uma sociedade, num mundo que se proclama, cada dia com menor vigor, civilizada. Ou porque tenhamos em nossas mentes um conceito inútil e ineficaz de tolerância, deixamos que nos fossem amputados a esperança, o sentimento e o vigor que em outros momentos descobrimos apenas intimidados. O pior é que a intimidação sobreviveu, enquanto esgotam-se em nós a paciência, a generosidade, a solidariedade e – quem dirá diferente? – o interesse por continuar. Não se trata mais de saber se será dado algum golpe, nos moldes dos conhecidos pronunciamentos do século XX ou sob formas de solércia e indignidade originais. De uma originalidade comprometida, tanta a recorrência com que humilham as condições a que Hannah Arendt chamava humanas. O golpe passou a conviver conosco, a privar de nossa intimidade – além de posta na privada nossa liberdade -, a constituir ingrediente de nosso cotidiano, como o pão e o feijão que são negados às mesas mais pobres, de pobreza ampliada, expandida, aprofundada, de que Dante Alighieri seria incapaz de dizer, no pior dos infernos que sua mente prodigiosa pudesse criar. Pretender o paraíso, mais que utopia, seria sinal da mais acabada insensatez. Não o seria, porém, imaginar que o ser, se humano realmente fosse, encontraria dentro dele mesmo a força necessária à superação de seus males, talvez o pior deles a convivência submissa aos egoístas e criminosos aos quais entrega seu destino.

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1 Comment


cfocus
May 14, 2022

Caro Seráfico, em Golpeados.... , uma excelente visão e sarcástica abordagem. Abraço. César Cantu

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