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Focas e focinhos


Ainda está distante o dia em que as autoridades da educação darão ao setor em que atuam o valor merecido. Falo não apenas da importância da função educacional, na vida da sociedade e nas preocupações governamentais. Disso têm falado os especialistas, ao tempo em que os governantes proclamam compromisso com a resolução dos problemas educacionais. Os valores subjacentes ao processo da Educação também são relevantes, embora aparentemente esquecidos. Os valores mais amplos, indiscutivelmente, levam à escolha da educação oferecida. Os valores dão sentido ao processo e ajudam na escolha dos métodos, técnicas e materiais utilizados. Neste particular aspecto, não há como ignorar a pergunta crucial: educar para quê? Em outras palavras, quais os objetivos da Educação?

Duas, pelo menos, podem ser as respostas, admitindo-se a possibilidade de composições que considerem ambas. Antípodas à primeira vista, as alternativas política e mercadológica logo se destacam. À primeira, salvo melhor juízo, corresponde a educação que leva o educando a níveis de crescente entendimento e reflexão sobre a realidade de que é parte. De modo tosco poderíamos dizer ser a educação destinada a formar cidadãos aptos a contribuir para a melhoria das relações sociais. Não falo aqui de relações humanas no sentido usual do termo. Refiro-me à compreensão do homem como agente de sua própria história e à sociedade por ele construída. Isso requererá crescente engajamento na tarefa de mantê-la em permanente processo de aperfeiçoamento. Veríamos os esforços dos educadores e o escopo dos projetos educacionais baseados nos valores humanos mais altruístas, a solidariedade, a compaixão, o reconhecimento e respeito ao outro, a sociedade percebida para além da soma dos comunitários. O homem como ser complexo, dotado de virtudes e vícios, aspirações e limites, sonhos e constrangimentos reais. Enfim, um modelo educacional exigente do estímulo e desafio à inteligência e à busca do desenvolvimento das potencialidades individuais. Em especial, à capacidade crítica necessária à compreensão, interpretação e reformulação do Mundo. Hoje e sempre...

A segunda posição vê o trabalho educativo como preparação do educando para aproveitar as oportunidades no mercado. O ser humanonão passaria de um fornecedor de força do trabalho. É do trabalho que se nutre a acumulação capitalista. Exemplos não faltam, a quem observa o grau de competitividade resultante dessa percepção inadequada do bípede inteligente. Exige-se dele não a inteligência, por isso o esforço hercúleo para fazê-la substituir pela esperteza. Essa a régua que mede a capacidade de concorrer, vez que os estímulos e desafios são todos obedientes não à solidariedade, mas à competição. Essa a “filosofia” do empreendedorismo, hoje constituído na base de muitos projetos falsamente apresentados como educacionais. Não bastam os registros que o SEBRAE tem oferecido da morte prematura de iniciativas dos que, em número expressivo, foram no canto de sereia das demissões voluntárias. O desemprego desejado – vejam só!

Dizer da impossibilidade de conciliar essas duas posições seria, em princípio, negar a verdade. Equivaleria a ficar de costas para a ordem política e econômica hegemônica implantar educação absolutamente ignorante do mercado e suas exigências. Igualmente danoso será negligenciar os atributos humanos em jogo, deixando-se levar por valores que reduzem o ser humano a fornecedor puro e simples de mão de obra. Seria infeliz retrocesso, uma espécie de passo largo e célere em direção à barbárie.

Daí minha preocupação com as alterações propostas na educação brasileira, em todos os níveis. Sujeitar a juventude brasileira à mera preparação para o mercado de trabalho é atentado aos próprios direitos humanos, pelo que ofende as características do animal inteligente. Há muita similaridade entre o adestramento de animais inferiores e o simples treinamento. Focas equilibram bolas no focinho, tanto quanto cavalos são capazes de marchar com cadência, nos picadeiros. Não é que se condene o fazer, mas que o pensar, refletir e criar parecem indispensáveis, mesmo para os que passarão a vida inteira forçados a fazer, obedecer e ser produtivos.

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