FILOSOFIA: DO CONFORTO DA IGNORÂNCIA E DA BOACONSCIÊNCIA DA ESTUPIDEZ À EXIGÊNCIA DEREVOLUCIONAR A RAZÃO
- Professor Seráfico

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01. Onde há pensamento, no sentido dialético e ontológico do
conceito, há filosofia. A filosofia da práxis reconhece que a origem e o
devir do pensamento têm por fundamento um movimento dialético que se
inicia na prática, vai desta ao pensamento e resulta num patamar superior
da prática, sempre mais qualificada porque carregada de pensamento. Sob
esse movimento dialético é que se pode concluir que não existe nada mais
prático do que a teoria (pensamento). Mais do que reaprender a ver o
mundo, como quer a fenomenologia de Merleau-Ponty, a verdadeira
filosofia é transformar o mundo. Revolucionar o mundo. É esse o sentido
revolucionário do conceito de pensamento. Com Lênin, o mais militante
entre os teóricos da filosofia da práxis, temos o reconhecimento dialético
de que sem teoria (razão, pensamento) revolucionária não há prática
revolucionária.
02. A filosofia perde sua razão dialética de ser quando se distancia
ou se aparta da objetivação teórico-prática dos conceitos de razão e
revolução e da necessária implicação dialética entre ambos. Vem de Hegel
e Marx a tese dessa implicação dialética. Bem a propósito dessa tese,
Razão e Revolução é o título de um denso livro de Marcuse, cujo subtítulo
é Hegel e o Advento da Teoria Social. Revolução pensada como um
imperativo ontológico da razão. Igual implicação dialética há entre filosofia
e democracia que, segundo Habermas (mesmo com dificuldade de ver o
mundo com os olhos do materialismo histórico e dialético), têm uma
origem comum e uma não existe sem a outra. Mesmo que o olho, como
afirma Goethe, deva sua existência à luz, é necessário ao espírito discernir
que a estupidez também se apresenta sob disfarce de luz.
03. Esse princípio dialético fundamental da filosofia da práxis, de
que a revolução é da essência mesma da razão, é uma exigência que
decorre do devir e da objetivação do ser humano como ser social. Apartada
de seu fim, que é a revolução, a razão se converte em mediação
instrumental: forma deformada a que o sistema do capital reduziu a
conformou a faculdade racional. Com Kant, Hegel, e tanto mais com Marx,
ratificada pela Teoria Crítica, e com as devidas distinções da base de
compreensão de cada uma dessas vertentes teóricas, a revolução impõe-se
como imperativo ético e político da razão. Ser racional em sentido próprio
é ser revolucionário. E é sob a filosofia do materialismo histórico e
dialético que a equação razão-revolução vai encontrar sua objetivação
superior. Minada e prisioneira da razão instrumental capitalista, a razão é
expropriada de sua teleologia revolucionária.
04. O que mais cabe a quem pensa é pensar contra o pensamento.
Não pensa quem não pensa por si. Não é tarefa fácil discernir, no ato de
pensar, se de fato pensamos ou estão pensando por nós. A filosofia passa
pelo caminho da recusa. E deve converter a resposta feita em pergunta que
desconcerta. O mundo do ser social é habitado e assaltado por muitas
respostas. Em muitos casos, respostas estúpidas, porque carentes de
pergunta. Aderir a respostas convencionais e não raro estúpidas é próprio
de quem se recusa a perguntar ou duvidar. É preciso recuperar a filosofia
perguntante da criança. A bem ou maldizer, quando diminui a atitude de
duvidar, quando pouco se pergunta, aumenta o coeficiente de respostas
estúpidas. Faz má filosofia e mal ao pensamento filosófico quem subestima
o poder da estupidez. Uma cognição tragada pela estupidez dificilmente se
deixa tocar pelo pensamento filosófico.
05. Filosofia, em seu sentido verdadeiro, amplo e necessário, não
é apanágio de formação especializada e institucionalmente regulada. Em
sentido gramsciano, todo ser humano é filósofo. Há e se produz filosofia
por fora da regulação e da ordem. Uma filosofia regulada seria uma
contraditio in verbis. Filosofia combina com democratização da formação,
o que implica o acesso às mediações necessárias para o desenvolvimento
do pensar. A filosofia, assim, pode ser tomada por um tipo de medida
epistêmica e política da densidade da vida democrática, o que jamais seria
possível na democracia burguesa, um conceito em si mesmo antinômico,
haja vista que em sua literalidade o conceito indica o poder do povo e não
da burguesia. Desde as conquistas do iluminismo temos por certo que
impedir o progresso do pensamento, essa determinação original da nossa
espécie, segundo Kant, é um crime contra a natureza humana.
06. Quem se dedica à filosofia em seu sentido socrático, livre e
não acadêmico, imune às medidas do produtivismo vazio, doente e
adoecedor, que hoje nas universidades alarga o espaço de um tipo refinado
de delinquência (a delinquência acadêmica, conforme o saudoso e irredento
Tragtenberg), não se submete jamais à lattescracia, síndrome que só
desmerece e avilta o nome do grande físico (e filósofo) brasileiro César
Lattes. Democrata e inimigo da ditadura, Lattes chegou a batizar seu
cachorro com o nome de Costa e Silva, o segundo presidente da ditadura
empresarial-militar instalada com o golpe de 1964. Em minha condição de
teólogo heterodoxo e sem cátedra, considero esta a única “injustiça”
(canina) cometida por esse grande e impenitente físico, injustiçado e tão
pouco conhecido, sobretudo no mundo do saber acadêmico. César Lattes,
Presente!
07. Vem de Nietzsche uma pertinente e instigante definição de
quem se dedica à filosofia: um tipo de médico da civilização, alguém que
de forma lídima, livre e epicurista, indica e vive a filosofia como um
caminho para a saúde da alma. Marx, que não era formado em filosofia e
nunca foi docente no sentido acadêmico, escreveu seu trabalho de
conclusão de curso (o TCC de hoje) sob genial inspiração do filósofo
materialista Epicuro. Um TCC, se possível fosse comparar, que deixaria em
vergonha boa parte de teses doutorais, pomposamente defendidas em
nossas academias. O aumento do número de letrados, como escreve Milton
Santos, não redunda em aumento do número de intelectuais. Potencializada
pelas tecnologias digitais, a produção da ignorância e da desinformação se
configura hoje como a mercadoria com maior retorno financeiro e
ideológico do mundo capitalista.
08. A quem pensa a filosofia de forma altaneira e livre dos
fechados aposentos dos especialistas (muitos acometidos de corcundas,
para citar Nietzsche – um capacitista avant la lettre? – ao escrever que todo
especialista tem a sua), sempre abre e jamais fecha ou dificulta o caminho
do pensamento, sobretudo em tempos de apologia da estupidez e de razão
carente de pensamento. Sem filosofia torna-se mais penoso o trabalho de
subtrair à estupidez a sua boa consciência, como escreve Nietzsche.
Permanece oportuno o desafio proposto por Heidegger de que à filosofia
(como sabedoria) cabe ser um tipo de guarda da ratio (razão).
Heideggeriano não sou, mas há verdade nessa indicação do autor de Ser e
Tempo. E para muito espanto, ainda afirmou: a ciência não pensa. Guardar
e cuidar da ratio é afirmar, como práxis, a exigência de revolução contida
no conceito, coisa que nunca esteve no horizonte do renomado pensador do
ser.
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*Professor de Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo heterodoxo e sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA- Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, novembro de 2025.

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