João Scortecci*
Eu sou um livro. Um exemplar raro do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis, 1839-1908), considerado o maior escritor da literatura brasileira. Fui impresso no ano de 1881, nas Oficinas da Typographia Nacional, na cidade do Rio de Janeiro, Capital Federal. Tenho pouco mais de 141 anos de vida, capa em bom estado, páginas amareladas e corpo revestido com belíssima encadernação de luxo. Uma raridade – em primeira edição – com autógrafo e dedicatória do autor, para um tal de João Scortecci. Estou catalogado e em lugar de destaque, no acervo da biblioteca de um importante bibliófilo paulistano. Tive sorte! Não sei se vocês sabem: nós, os livros, é que escolhemos nossos protetores e leitores. Um livro impresso em papel – novo ou antigo – precisa de amor, carinho, atenção e zelo! Antes de ganhar notoriedade de obra rara, passei um longo tempo em um sebo ruim, jogado literalmente às traças. Já sobrevivi a um incêndio, escapei de um vazamento de água na cabeça da lombada, sofri ameaça de descarte e de ser, literalmente, reciclado. Minha morte seria uma tragédia. Um crime! Felizmente escapei do pior. Nós, os livros, sofremos ataques e destruição por fanatismo religioso e político, depredação, maus tratos, contaminação por fungos e bactérias. Minhas páginas estão amareladas e ásperas. O tempo é cruel. É o desgaste natural causado pelos excessos de exposição a luz, umidade, temperatura inadequada e inimigos predadores, como homens, cupins, traças e roedores. Nós, os livros, gostamos de ficar em prateleiras especiais, em local afastado das paredes, ordenados verticalmente. Ventilação e limpeza são indispensáveis para a nossa sobrevivência. Não gostamos de calor e aperto. 22°C está perfeito! Temperatura excessiva faz com que as fibras de celulose percam as suas propriedades de elasticidade, flexibilidade e resistência. A umidade relativa do ar não deve ultrapassar 60%. Iluminação ambiental de 50 watts é a correta. A luz artificial mais utilizada é a fluorescente. Nunca se deve utilizar luz ultravioleta. Ela nos mata! Dia 23 de abril é o meu “Dia Mundial”, data escolhida pela Unesco para celebrar o livro, incentivar a leitura, homenagear autores e refletir sobre seus direitos legais. Essa data foi escolhida em tributo aos escritores Miguel de Cervantes, Inca Garcilaso de la Vega e William Shakespeare, que morreram em 23 de abril de 1616. Dia 29 de outubro é o meu “Dia Nacional”. Foi escolhido por ser o dia do aniversário da Biblioteca Nacional do Brasil (Fundação Biblioteca Nacional), fundada em 29 de outubro de 1810. São dias a serem celebrados todos os dias e por todos nós. Não se ama um livro vez por outra e muito menos com lapsos de memória. Nossas almas são eternas e, quando tocadas, contam histórias, fazem versos, ensinam conhecimento e propagam sabedoria através dos tempos. Eu sou um livro. E você?
__________________________________________________________________________________*O autor é escritor e Diretor-Presidente da Editora Scortecci, com 40 anos na edição de livros e promoção de eventos literários.
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