Criança, classe média, consumismo e o tempo como tecido da vida
- Professor Seráfico
- há 3 dias
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José Alcimar de Oliveira*
A criança leva à boca os objetos antes de conhecê-los,
para conhecê-los.
(Gaston Bachelard).
01. João Antônio, num ensaio iconoclasta intitulado Corpo-a-corpo com a Vida, ao diagnosticar a atitude consumista das camadas ditas intelectuais, escreve: “Tudo isso se denuncia como o resultado de uma cultura precariamente importada e pior ainda absorvida, aproveitada, adaptada. Como na vida, o escritor brasileiro vai tendo um comportamento típico da classe média (sim, acrescento: a classe média) – gasta mais do que consome, consome mais do que assimila, assimila menos do que necessita. Finalmente, um comportamento predatório em todos os sentidos”. Segundo Bachelard, o aparelho digestivo tem mais a ver do que imaginamos conhecer acerca da cognição humana. De que se alimenta a classe média? O que a classe média, consumista até à medula, oferece como alimento às crianças.
02. Leitor de Freud e Schopenhauer, Bachelard nos deixou instigantes e heterodoxas análises sobre o mito da digestão, a força da libido e o conhecimento objetivo. “Costuma-se dizer – escreve nosso iluminado epistemólogo – que o otimismo e o pessimismo são questões de estômago. O que se busca nas relações sociais é o bom ou o mau humor: é no relacionamento com o homem que Schopenhauer procurava argumentos para sustentar seu sistema, ou, como ele dizia de modo tão sintomático, ‘alimentos de misantropia’. Na realidade, o conhecimento dos objetos e o conhecimento dos homens procedem do mesmo diagnóstico e, por certos traços, ‘o real é antes de tudo um alimento’”.
03. Uma das definições mais belas do tempo me veio do pensador brasileiro Antonio Candido (1918-2017): "tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida". Embora (já o tenha dito um célebre sociólogo germânico) sejamos todos sujeitos monetários, inclusive quem é intocado pela liquidez, o dinheiro não é e nunca foi garantia de fruição afirmadora da vida. Do viver faz parte a gratuidade das coisas e relações, dos bons afetos e alegrias, realidades que escapam ao coeficiente venal do valor de troca. Haverá medida financeira para avaliar o riso gratuito de uma criança ou a beleza de uma rosa, cuja essência reside, como afirma Angelus Silesius, em ser sem porquê, e em florescer por florescer?
04. Tempo não é compressão ou medida de linha produtiva. O que significa produzir para consumir e consumir para alimentar um sistema voraz de produção, sobretudo quando a produção exclui do usufruto quem de fato produz? Tempo, na clássica compreensão (já previamente anticonsumista) de Santo Agostinho, é distensão da alma. Sob a férrea lógica do consumo o que temos não é distentio (distensão), mas compressio (compressão) da alma, se é que me favoreça a gramática latina. Um dos princípios do tetraphármakon (quádruplo remédio) do filósofo Epicuro nos diz que é possível ser feliz. Sim, estou de acordo com o mestre grego, para quem a filosofia é compreendida como saúde da alma
05. Felicidade não pode ser meta, sobretudo se esta significa busca obsessiva de algo exterior ao que somos. Como aponta a sabedoria iconoclasta de Nietzsche, o que deve mover o ser humano é a potência que o torna capaz de ser quem é. Felicidade (embora eu prefira o conceito de alegria, por sua natureza spinozista) implica um artesanato interior, trabalhado no cotidiano da vida. Viver é uma forma de artesania em que o tempo se converte em espaço da formação humana, algo que bem se afina à materialista concepção histórica e dialética do ser social, que se move por contradições, necessárias e contingentes.
06. Alegria, já o disse, é um conceito spinozista. Algo próprio da intuitiva compreensão que estrutura a ratio (razão) filosófica das crianças. Alegria é um afeto superior. Mais do que um sentimento, alegria é poder (potência) de agir. É antes um processo. Nada a ver com o ideal compulsório de felicidade, como vende a ideologia neoliberal. Não é satisfazer o sempre impossível sonho de consumo. O objeto de consumo que nos atrai hoje com promessa de felicidade imediata torna-se fastio no dia seguinte. Fastio e vazio estruturam o tempo do consumo. A didática do consumo sabe como tornar as crianças funcionais à tirania que o dinheiro exerce sobre os adultos. Mas as crianças sabem que alegria e tempo como distentio animi (distensão da alma) são da ordem do necessário.
07. Há muito em comum entre Epicuro, Spinoza e o semita Jesus de Nazaré (visto por Santo Irineu como o primeiro homem livre da história): eis três grandes artífices da alegria e do tempo. Não sei se Spinoza amava o vinho. Epicuro, seguramente. Bonum vinum laetificat cor hominis (o bom vinho alegra o coração do homem), cfr. O Eclesiastes. E para os devidos registros, vale a lembrança de que o primeiro milagre de Jesus de Nazaré ocorreu numa festa de casamento, de gente pobre e periférica, em Caná, na Galileia, quando transformou água em (bom) vinho. Se fosse festa de classe média, regida pelo consumo conspícuo, vinho não teria faltado, alegria sim. O bom nazareno também pensava pelos pés.
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*Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas. Outubro de 2025.
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