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A perplexidade de Narciso


O que pôs Narciso a perder não estava no espelho em que ele gostava de olhar-se, mas dentro de si. A mitologia, tenha criado arquétipos onde e quando ocorreram, encontra sempre um jeito de atualizar-se. E não faltam expressões populares perfeitamente ajustadas aos tempos antigos, mesmo os mais antigos. Vejo, leio, sinto o mito de Narciso ecoando na frase inesquecível que Tancredo Neves tantas vezes pronunciou: a esperteza às vezes é tão grade, que engole o dono.

É certa a ligação de Narciso com a vaidade. Mas não só com ela, pois está presente em toda manifestação humana que põe o homem, determinado indivíduo, como centro de tudo e de todos. Personalidades assim, no Brasil de anteontem, de ontem e de hoje, não nos têm faltado. Como será o amanhã?

O culto à própria imagem, assim, se tem prestado à desconstrução de imagem inspirada pela esperteza mais que pela inteligência. Mesmo quando o ser narcísico traz consigo virtudes capazes de compensar os vícios que também vêm junto, nem sempre essa compensação se revela. Ocorre, muito frequentemente, de as virtudes sucumbirem ao vício exacerbado, a vaidade. O indivíduo basta-se a si mesmo, eleva-se a tal patamar de prepotência, até o dia em que ruir a própria imagem e lançar ao léu o prestígio e a liderança conquistados.

É bem de Luís Inácio Lula da Silva que estou falando, segundo o vejo agora, no que penso ser o ocaso de sua vida política. Esperto como poucos os contemporâneos, dotado de invulgar capacidade de aprender, Lula saiu do ermo sertão nordestino e chegou ao posto mais alto de uma das mais importantes nações. O imigrante que João Cabral de Melo Neto retratou não se prendeu à pobre vida severa e severina. Saiu do posto desfrutando de prestígio até hoje não alcançado por nenhum dos outros que o antecederam. No Brasil e no exterior. A traição cometida contra os que o endeusaram e aplaudiram, contudo, levou-o à inglória e constrangedora situação por que passa. Dizer-se que foi vítima de perversas maquinações não basta para tirar dele o peso das acusações, a injustiça das decisões, judiciais ou não. Chegou o dia em que o grau de prestígio e amor que recebia da maioria do povo brasileiro e de figuras importantes do cenário internacional confrontou-se com os resultados de sua rendição às – demos um tom coloquial a este pedaço de escrita – más companhias. Estas, e não o povo que o consagrou líder, foram as maiores beneficiárias de seus governos. Por isso, as milhões de famílias que atravessaram a fronteira da miséria foram devolvidas ao lado onde antes estavam. Os ricaços, não. Permanecem lá e dão de costas ao benfeitor equivocado.

Isso explica o crepúsculo do líder ex-operário. Explica a ausência cada dia maior de gente disposta a defendê-lo. A tal ponto, que ele devolve o desprezo que aos poucos lhe vai sendo votado. Daí buscar inspiração no que, parecendo seu contrário, é apenas representante da simetria em que ambos se colocam, embora aspirantes à mesma posição: diante do espelho, Narcisos perplexos com o que ocorre. Mais ainda com o que ocorrerá. Esperemos! A nós cabe superar a perplexidade de ouvi-lo saudar a covid-19. No melhor figurino do seu aparente opositor.

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