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A ideologia do ódio a Judas

Se o mundo vos odeia, reparai que, antes que a vós, me odiou a mim (Jesus de Nazaré, Jo 15,17)

José Alcimar de Oliveira *

01. Para escapar aos limites que as normas de impressão impõem, recupero aqui no primeiro parágrafo o título completo que deveria encimar este breve texto: A ideologia do ódio a Judas e a personificação do mal: notas marginais sobre Jesus, Hegel e a certeza do sensível. De forma ainda mais pretensiosa e mais curta, poderia ser: A ontologia do ódio. Sim, o ódio é um constitutivo ontológico primário de nossa condição humana. Segundo Spinoza, o ódio é um afeto negativo e tudo que desejamos sob a força do ódio é desleal e, no âmbito da sociedade civil, injusto. Por ser primário, o ódio carece de estatuto filosófico. Tanto assim que a palavra filosofia caminha em direção contrária ao ódio, pois tem sua origem na bela cópula entre amor e sabedoria. Amor à sabedoria. É de Santo Agostinho a recomendação filosófica de que a sabedoria deveria ser a medida da alma humana. Modus ergo animi sapientia est. O ódio enquanto movimento pulsional dispensa mediações. Odeia-se e pronto. O que é diferente de tomar o ódio como objeto da razão filosófica, ontológica, teológica, como queiram.

02. Necessário é igualmente trazer à luz da razão que não se faz discurso de ódio sem que se recorra a um modo de racionalidade operativa e sob uma arquitetônica planejada. Não se monta um gabinete de ódio de forma aleatória e voluntariosa. Organizar o ódio exige qualificação racional, investimento tecnológico e financeiro, elevada sofisticação cognitiva e operadores para isso habilitados. Há sempre um currículo oculto, não consciente, na aparente gratuidade da mente mobilizada pelo ódio. O ódio-efeito sempre esconde o ódio-causa. Mutatis mutandis, segundo o Mouro de Trier, o valor-de-uso oculta o valor-de-troca e os dois o valor-trabalho. O desvelamento dessa trama exige o trabalho intelectual de quem fez o trânsito da consciência-em-si para a consciência-de-classe. A despeito de seu refinado anticomunismo, se conhecesse o Brasil dos anos recentes, o filósofo romeno Gabriel Liiceanu, que em 2007 publicou o livro intitulado Do ódio, teria de se haver com uma aporia: como explicar a política de ódio fundada no medo do comunismo no país da mais enraizada e predatória exploração capitalista?

03. Existe uma medida teológica do ódio? Como desvelar o véu evangélico de que se cobre o ódio no Brasil? Como conciliar a matriz do

ódio positivista de nossa ilustrada elite (inclusive a do estamento castrense), sem nenhum estatuto intelectual de elite, com a forma comteana do amor por princípio, da ordem por base e do progresso por fim? Afinal, qual é a medida do ódio do mundo a Jesus de Nazaré e o ódio do mundo a Judas, o filho de Simão Iscariotes. A despeito de minha exegese heterodoxa e da condição de teólogo sem cátedra, não me parece razoável concluir da leitura dos Evangelhos nenhum traço de ódio de Jesus a Judas. Nem de Judas a Jesus. A raiz do ódio a Jesus era de natureza religiosa e política e provinha do mundo do Templo e de sua associação voluntária ao Poder Romano. Críticos dessa opressão combinada, religiosa e política, que vampirizava o povo dos pobres do mundo palestino, Jesus e Judas tinham leituras e orientações divergentes quanto ao enfrentamento a esse duplo domínio. Eram dois combatentes com armas diferentes e orientados por distintos princípios revolucionários. Judas, o zelota, seria o Guevara de Jesus? E Jesus, a quem posso comparar? Seria Ele o Gandhi rejeitado por Judas?

04. Penso que os autores dos Evangelhos, por terem feito leituras teológicas e tardias do Jesus Histórico, e elaboradas a partir de um fio condutor destinado a exaltar o Cristo da Fé, o Messias, Ungido de Deus, optaram por deixar à margem da irrelevância textual a figura de Judas. O renegado parceiro de Jesus foi entregue à própria sorte. E a má sorte de Judas fez história ao longo da história, notadamente no período medieval. O Missal Romano anterior ao Concílio Vaticano II ainda mantinha a expressão “oremos pelos pérfidos judeus”. Judas carregou e carrega sobre si o peso ideológico da personificação da culpa e do ódio. Mesmo que em proporção descendente, ainda avulta no folclore brasileiro um vasto repertório de expressões discriminatórias e de rituais de malhação do Judas. Um exemplo elucidativo é figura do judeu errante, sempre de botas, como caminhante suicida a vagar sem rumo, que dá origem à expressão “onde Judas perdeu as botas”, de igual modo as brincadeiras do “rasga velha e velho”, tanto como os bonecos feitos de mulambos a representar figuras, sobretudo do mundo político, execradas e associadas ao Judas traidor. O emblemático Judas Asverus, de Euclides da Cunha, que narra o ritual do sacrifício de Judas no alto Purus protagonizado por seringueiros explorados, é um texto incontornável.


05. Imagino que num possível colóquio com Mateus, Marcos, Lucas e João, Jesus de Nazaré teria reparos a fazer sobre o injusto lugar e a execrada imagem que os nobres evangelistas construíram de Judas. Não seria de estranhar se da natureza humana de Jesus de Nazaré, proclamado como morada verdadeira do divino, brotasse um generoso protocolo de autocrítica mútua entre Jesus e Judas. O Grupo dos 12 se recomporia e

dessa dialética apostólica de avanço e recuo o resultado só fortaleceria a alegria da luta: “Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15,11). Sei da minha insignificância e reconheço que não é da competência de um Frade sem Ordem propor revisão do estatuto canônico dos Evangelhos. Fica apenas aqui o desejo literário e me conforta saber, como aprendi do mestre Luís Buñuel, que depois dos 60 tem o ser humano o humano direito de declarar a inocência da imaginação. Assim como Platão e Aristóteles cuidaram de construir um Sócrates oposto aos sofistas, os evangelistas, por seu turno, separaram a figura de Jesus do movimento político dos zelotas, que pregavam um confronto direto à dominação romana. Seria Judas o zelota infiltrado entre os apóstolos?

06. Jesus de Nazaré nunca teve em Judas um inimigo. Era seu parceiro de confiança, haja vista ter-lhe sido confiado administrar as parcas finanças do grupo dos apóstolos. Ambos revolucionários, Jesus, diferentemente de Judas, apostava na revolução pacífica, da “não-violência ativa”, conforme Dom Helder Camara. A propósito, o grande historiador das origens do cristianismo, Eduardo Hoornaert, belga que se fez brasileiro nordestino desde 1958, publicou recentemente uma bela e excelente biografia sobre o bispo mais execrado pela ditadura empresarial-militar brasileira implantada a partir de primeiro de abril de 1964: Helder Camara: quando a vida se faz dom. Segundo Hoornaert, “a revolução de Jesus resgata a liberdade do adversário e é baseada no que se costumou chamar ‘conversão’. A última palavra está com o amor. Criar um ser livre é a extrema opção (arriscada) de Deus, que é puro amor. Pode dar certo, pode fracassar. Judas, livre em sua opção, no fundo não entende o projeto de Jesus. Ele pode ter sido muito inteligente, mas não entendeu. E, concordemos, não é fácil entender o Evangelho de Jesus”. Textos, como o de Eduardo, são um convite ao pensar.

07. Por fim, penso que a figura de Judas, o folclore de maldade que se criou sobre ele, sobretudo na Idade Média, sempre foi útil à ideologia da personificação do mal. A burguesia sabe como trabalhar isso. Para aquela consciência que, no sentido hegeliano, permanece presa à certeza da sensível, não adianta falar do mal social, do pecado social, das estruturas pecaminosas. O mal metafísico (tanto quanto o social) é coisa para a cabeça de intelectual. O pobre sempre se mobiliza contra o mal imediato, personificado. A organização política do ódio sabe disso. Submetido a um verdadeiro linchamento moral e político pela burguesia nacional, que terminou (sem que este fosse o seu plano) pavimentando a estrada para a extrema direita e a eleição do atual ocupante do assento presidencial, Lula é um exemplo inconteste de vítima do poder ideológico

da personificação do mal. Não considero Lula um santo, porque humano como todos nós e feito de contradições, mas como negar o linchamento moral e a execração pública a que foi submetido pela combinação ideológica e diabólica arquitetada pela oligarquia mediática patrocinada pela autocracia burguesa? Nenhuma trégua a essa tosca burguesia antinacional, que voluntariamente se subalterniza ao Império do Norte, promove o ódio de classe e vive à custa da sangria do povo trabalhador.

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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, exegeta heterodoxo, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe.

Em Manaus, AM, abril, na Semana Santa do ano da virada de 2022.

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