Tornou-se truísmo afirmar que a primeira vítima de qualquer guerra é a Verdade. Tão verídica quanto essa, a constatação de que não só a guerra, mas os variados interesses nela envolvidos sempre inventam suas próprias verdades. Esse exercício malfazejo constitui-se, nos dias que correm, matéria do cotidiano, e não apenas no Brasil. Não bastasse a reação das autoridades nacionais (também aqui, não só elas) à pandemia que já matou mais de 650 mil pessoas, a mentira é criada, disseminada e defendida, produzindo a morte, sufocadas num leito de hospital ou atingidas por algum projétil vítimas, solitárias ou numerosas. Comparadas as duas formas de matar, às vezes com o uso de uma simples caneta, a morte é fenômeno que iguala os indivíduos. Fosse qual fosse, seja qual seja a simpatia deles pela ideia (ao menos) de igualdade. Generaliza-se, hoje, feroz ódio contra qualquer pretensão de aproximar os níveis de bem-estar social nos diversos segmentos da sociedade. Por isso, o desrespeito aos mais elementares direitos dos cidadãos é rotineiro e o resgate de problemas políticos e sociais que se pensava ultrapassados retornam – e com que vigor!
Testemunhamos, com alguma perplexidade, um conflito bélico que muitos acreditam encaminhar-nos para a destruição do Planeta. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, menos que gesto inspirado pela ideologia, tem vínculo maior e profundo com as formas como as diversas sociedades e respectivos governos encaram o Planeta, sua população, seus problemas e, também, a apropriação das riquezas de que a Terra é repositório. Como é naturalmente desigual a distribuição desses bens, tratam os mais fortes de submeter os povos aos seus próprios desígnios, assim se apoderando de recursos de toda ordem. Esta é a moldura em que se trava a conflagração, quaisquer que sejam os pretextos que tentam justificá-lo.
Dentro dessa moldura, cabem aspectos históricos que nunca será demais relembrar, muito menos esquecer. Neste caso, tem concorrido para acirrar o ânimo das nações até agora envolvidas, o desdém votado à conduta dos governantes de alguns dos países a questões políticas importantes. Aqui, refiro-me especialmente à própria atuação da ONU, particularmente ao seu chamado Conselho de Segurança.
É sabido quanto as resoluções desse órgão coletivo têm sido ignoradas, dando a impressão de absoluta ineficácia e ineficiência do Conselho. Cabe, portanto, observar a extinção do Pacto de Varsóvia, enquanto permanece atuando com a voracidade e a ferocidade conhecidas a Organização do Tratado do Atlântico Norte. Uma vez desfeita a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a promessa era a de que estaria de todo superada a guerra fria característica dos anos 1950-1980. O Mundo, enfim, viveria em paz. Não foi o que se viu.
Nesse mesmo período registraram-se violentas ações bélicas, desde a Guerra na Coreia até os combates na Síria, Iraque, Afeganistão, Líbia e Yemen, esquecidos pelos media, porque os interesses agora se voltam para o continente europeu. Nesse entremeio, expandiu-se a OTAN, repetiram-se as ameaças contra países menos poderosos, com que as operações no Cone Sul, mais próximas de nós, sequestraram, sequelaram, torturaram e mataram expressivo número de seres humanos. Longe daqui, a atuação da OTAN se tem feito presente com maior ênfase, a tal ponto que a promessa feita logo após o desmantelamento da URSS não ocorreu; ao invés, a OTAN passou a cooptar os países antes integrantes do Pacto de Varsóvia.
Já não se tem posto sequer em questão o apoio emprestado a países com governantes autoritários, em nome do que os poderosos agressores chamam “democracia”.
Na guerra em que Rússia e Ucrânia aparentam protagonismo, podem-se encontrar ingredientes propositalmente ignorados pelos analistas. Tal como Hitler, Putin e Biden desejam na prática ampliar sua própria jurisdição. No popular: meter-se onde não têm direito. A alegação do Presidente norte-americano, semelhante à de muitos de seus antecessores, já não tem qualquer fundamento. Nem desperta a adesão dos cidadãos mais esclarecidos: defender a democracia, forçando golpes de Estado e se aliando a outras ditaduras. Isso não faz o menor sentido. Do outro lado, a trajetória de Putin e sua vocação autoritária não o tornam diferente de tantos ditadores, ontem como hoje, aqui e alhures.
Há mais, muito mais aspectos propositalmente fora do foco dos analistas, que operam os mesmos efeitos que os discursos dos governantes autoritários e cobiçosos. Por isso, os media também contribuem para o sacrifício da Verdade.
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