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Vassalagem e desarmonia

Dizer que a democracia passa por processo de fragilização em todo o Mundo equivale a reconhecer o caráter pandêmico da covid-19. Ambas as constatações descrevem o cenário, sem que isso venha servindo à tentativa de construir outro panorama, de modo a modificar as estruturas responsáveis pela realidade social. Salvo a insistência em não ver o que está a um palmo de nosso nariz, a grande maioria dos problemas com que se hão as populações tem a ver com a extrema desigualdade a que estão submetidas. Essa desigualdade tanto concorre para gerar a perda de confiança nas instituições democráticas, quanto para multiplicar os prejuízos decorrentes da propagação de viroses. E não falo apenas da covid-19, tantas são as outras enfermidades que ceifam a vida de enormes parcelas da população, mundo afora. A dentro, também. Agrava o quadro e amplifica a dificuldade em buscar a superação dos problemas a recusa dos integrantes de muitas dessas instituições, em analisar desinteressada e honestamente sua contribuição para a construção de cenário tão repulsivo. Não é só no Brasil que se constatam os sórdidos efeitos da desigualdade. Mas é nele que nascemos, vivemos, trabalhamos e muitos morreremos. Raras as vozes que se levantam, seja para pôr o dedo na ferida certa, seja para propor algo que não seja a retaliação de uns e a agressão às vezes soez e injusta ao outro. Os interesses individuais são o único móvel de qualquer ação ou intervenção, o butim sendo o alvo do olhar cúpido e o destino alheio posto fora de consideração. Não se observa um só gesto, parta de onde partir, fundado na necessidade de ir ao fundo do problema e oferecer perspectivas diferentes das que têm orientado a pretensa solução. Ninguém se dispõe a perder nada, mesmo - sobretudo, até - se seu nível de acumulação chega a exageros que a mente mais criativa não consegue levar à maior fruição da riqueza ostentada. Não que se pretenda erigir a caridade como dever legal. Pratica-a quem o deseja, não bastando isso para dispensar os governantes e legisladores de encontrar e propor condições de os bens e serviços públicos serem desfrutados por todos. Isso só se faz quando a riqueza social, sabida como produto de todos os que trabalham, é repartido sob critérios justos e humanos. Aqui a porca torce o rabo. A precarização do trabalho, a exploração crescente da mão-de-obra a imposição tributária sobre os que têm menos revela-se, então, a grande cruz carregada pela massa de trabalhadores. De outro lado, as instituições que poderiam legitimamente intervir - e para isso foram constituídas - imiscuem-se nas questões que não lhes dizem respeito, porque miniaturizam suas funções, também apegados os seus membros a interesses que não lhes cabe representar. O resultado é o que se vê: o país desgovernado como nau sem rumo, o Poder Legislativo tratando de proteger-se contra eventual punição pelo desrespeito ao ordenamento jurídico, o Judiciário extrapolando de seus limites. Entre a autonomia e a harmonia, as instituições ditas republicanas preferem render-se à mesquinharia e à sordidez que cobrem o cenário no qual se movem.

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