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Um poeta ao telefone

Ao toque do telefone, interrompo minha tarefa. O texto em elaboração é provisoriamente abandonado, porque me agrada ouvir o poeta. Este, sim, poeta maiúsculo, íntimo das musas, primo-irmão das encantarias. Do outro lado da linha, a voz distante não precisa identificar—se. Ela se basta – e basta aos ouvidos deste que, incapaz de ouvir estrelas, não é surdo aos versos, amigo absurdamente privilegiado dos que os fazem. É Jesus, aquele que ouço. O que, dele sendo o sagrador, se não cabe prover de pães, mas de Poesia, traz a fronte coberta dos louros triunfais. Não o triunfo medido em vidas subtraídas, roubadas, tornadas cinzas e pó. O que move um poeta, encantado por definição e mister, a privilegiar os que não chegarão, sequer, a um dia ser sua paródia? Caiba aqui, para muito além da amizade envelhecida e purificada pelo calendário, a reciprocidade dos sentimentos. Acobertada pela cumplicidade de propósitos e pela posição de que olham o mundo. O sem-fio da telefonia, a distância geográfica que os aproxima, poeta e paródia, desfazem-se nas ondas, sejam curtas, sejam médias, sejam longas. Contam, no momento como em tantas outras passagens da vida de ambos, a vida com que foram contemplados. E da qual, com ou sem propósito definido, vida composta de versos e reversos, mais que o proveito material, tiram a seiva dela mesma: a vida servindo à Vida; a Vida enchendo de encantamento os dias de cada um. E sabendo que, cedo ou tarde, porque o cedo de uns é o ocaso de outros, os vaticínios serão cumpridos. Das profundezas onde moram os encantados emergirá o encantamento que será de todos. De pães todos serão saciados. Haverá loureiros a prover de folhas a coroa com que todos serão cobertos.

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