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TRISTE PARTILHA DO ERRO

José Alcimar de Oliveira*


01. Clarice Lispector, que nos deixou em 1977, havia manifestado em forma de crônica seu estado de pavor em relação à capital federal: “lugar onde ;o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado (…)”;. Brasília, segundo Clarice, “(…) foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília”;. Para depois concluir: “O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é a manchete invisível nos jornais. Aqui eu tenho medo. A construção de Brasília: a de um Estado totalitário… “;. “Brasília é a imagem de minha insônia”, afirmou.

02. O Brasil de 2020, feito Macabéa sem estrela e sem hora de alegria, afunda nas trevas do obscurantismo mais boçal e do ódio que se organiza como política de Estado. Clarice dificilmente imaginaria que o Brasil no ano em que ela celebraria no plano do aquém, se viva, seu centenário de nascimento, estivesse em estado tão regressivo, sob cinzas e sem estrelas. Em sua crônica política, escrita há quase 50 anos, tecida com a mais refinada sensibilidade humana e literária, antecipava como uma vidente que “a construção de Brasília”, feito o anjo da história de Walter Benjamin, projetava o futuro com as lentes do passado e antevia em 2020 as sombras “de um Estado totalitário”. Clarice se foi como uma estrela que de longe nos ilumina um dia antes de completar 57 anos, em 09 de dezembro de 1977. Preferiu transfigurar-se um dia antes de nascer.

03. Clarice prefigurou “um Estado totalitário”. Diria nesse 2020: um totalitarismo venal, numa combinação de arrogância financeira com política de baixíssima extração. Na Miséria da

filosofia o grande Mouro de Trier caracterizava sua época como a da venalidade universal e, nos célebres Manuscritos de Paris, via no dinheiro o operador universal da divisão. O processo de decomposição institucional da República avança em intensidade e abrangência. O Estado brasileiro, que já nasceu oligárquico e patrimonialista, sempre esteve sob o tacão do poder do grande capital. Enquanto isso, pesa sobre a classe que vive do trabalho a mais agressiva, continuada e degradada desigualdade social. Multiplicam-se de Norte a Sul e de Leste a Oeste, desde o que de pior se concentra no Planalto Central, as dores e os sofrimentos de Macabéas índias, negras e brancas em diferentes matizes de pele e sob o peso de continuada e sistêmica opressão.

04. Se o acaso ou a necessidade nos preservaram de falhas geológicas, as oligarquias da Casa Grande não tiveram escrúpulos nem mediram esforços na construção da crescente falha política que parece tragar nosso presente e nosso futuro. Sobre a natureza generosa e sobre as culturas milenarmente construídas pela engenhosidade da diversidade étnica foi reeditado, de 1500 até hoje, 2020, e sob a geopolítica da destruição, o reverso mitológico das origens bíblicas narradas no Gênese. Iniciou-se a era dos sismos políticos e em nada naturais. O último sismo recebeu o nome de República. Segundo o historiador José Murillo de Carvalho, consumou-se como República dos bestializados, ou República que nunca foi.

05. Pandemia e pandemônio se abraçam sob a maldição de Ate, a divindade grega leve e ágil que personifica o erro deliberado, metódico. O erro como triste partilha em desalinho com a promessa do bom senso, que deveria ser a coisa mais bem partilhada no mundo, de acordo com o otimismo cartesiano. No Brasil errático o tempo político se acelera no mesmo ritmo em que se degenera. Os acontecimentos se atropelam e parecem não caber na cronologia cotidiana. Presidido pela política do ódio à política, os grandes partidos se equiparam por baixo e chafurdam no lodaçal do fisiologismo. Vivem em função de si mesmos,

refratários à grande política, sempre apartados do Brasil real e (i)mobilizados pela agenda eleitoral, pior: eleitoreira. Nos bastidores do poder, segue a operar sem controle o poder maior do capital na capital da venalidade. Para Brasília parece convergir o que temos de pior nesse Brasil à deriva, ainda que com método.

06. A sabedoria dos antigos nos ensina que quando sobra poder escasseia o bom senso. Pascal insistia que aquilo que é forte tem que ser justo e o que é justo tem que ser forte. Para além de Hegel e Marx, no Brasil passamos da tragédia à farsa, e desta ao escárnio. A República segue apartada do povo. Serve a poucos e a muitos maltrata. Chegamos ao limite e nada nos resta senão no parlamento dos becos, ruas e praças organizar corações e mentes contra o poder das trapaças. Sem a luta e a transição da consciência imersa à consciência de classe dos milhões que seguem acuados na senzala do andar inferior o andar de cima seguirá a edificar no presente as ruínas de um futuro anunciado. A alternativa ao que temos consiste em nos tornarmos no que somos, como preconizava o Nietzsche da potência humana matinal.

07. Luta de resistência e resistência da luta, só isso nos cabe. Do contrário, prevalecerá a sentença do grande Santo Agostinho: remota itaque justitia, quid sunt Regna nisi magna latrocinia? (Se a justiça desaparece, o que são os Estados senão um bando de ladrões?). Chegamos a um ponto de não retorno. Como fazer a necessária transição, para pensar com Cícero, da mala morata civitas para a bene morata civitas? (da cidade dos maus costumes para a cidade dos bons costumes?). No célebre texto do Prefácio, de 1859, assinala Marx que a espécie humana só traz à baila os problemas que comportam solução. Solução exige resolução. Do contrário, enquanto permanece na letra sem vida o Estado Democrático de Direito, na vida sem letra, com vida subtraída, permanecerá de forma autoritária o Estado Monocrático de Privilégios.

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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, Brasil, 13 de dezembro de do ano coronavirano de 2020


Comentário ao texto acima

Marecelo Seráfico*

Excelente, Alcimar! Denúncia e provocação. Denúncia inspirada na clarividência estética de Clarice Lispector. E provocação bordada a partir de gigantes da observação da cena pública e da ação política.

Ocorre-me que a Brasília do festejado Niemeyer lembra mais um cemitério do que um parque.

Para mostrar a força da política no país, capaz de decidir e patrocinar a construção de uma cidade, subjugou-se o cerrado ao concreto armado, à argamassa à qual o brilhante arquiteteto conferia formas sinuosas para dissimular a dureza, a frieza e a aridez do cimento, da areia e da brita secos.

Brasília nasce dessa arquitetura da dissimulação. Uma arquitetura que se projetava, na utopia do homem que a sonhou, como realização pessoal e como símbolo de mudança, de modernização.

Essa figuração de uma "cidade do poder", de um lugar feito para abrigar os poderosos, para isolá-los, diz muito da natureza do exercício do poder no Brasil.

Corrijo meu erro inicial. Brasília é, sim, um parque. Se não nas formas, no estilo de vida que proporciona a seus habitantes privilegiados, aqueles do Plano Piloto. É um parque de perversões. E quem não as aceite, entenda ou a elas resista, orbita em torno da cidade e se torna objeto dos que nele pervertem. São meros satélites a captar restos.

Brasília é um cemitério com lápides torneadas, retas e envidraçadas. Em seus prédios pulsa a venalidade dos zumbis, dos vampiros. Para que haja vida lá, a morte é necessária em outro lugar.

A Brasília dos ratos de Clarice é o cemitério do país. E houve a ilusão de que seria o símbolo de sua afirmação.

As ilusões, por vezes, são mais danosas que as desilusões.

Vasto e grato abraço.

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* Sociólogo, Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFAM.

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