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Tire as crianças da sala


Tire as crianças da sala, que vou acompanhar a reunião do Ministério. Ninguém se surpreenderá ao ouvir essa ordem do chefe da família à dócil e enternecida mulher. Horas antes o casal ainda acreditava que a família por ambos constituída parecia com tantas outras famílias. O núcleo familiar ideal ruíra para marido e mulher, na tarde desta sexta-feira. Fora difícil entreter os filhos, todos crianças, longe da televisão. Menos por que disputassem com eles o controle remoto e a pressão dos dedos nervosos perseguindo canal após canal. A partir daquele momento, preocupava-os impedir que os meninos enriquecessem o vocabulário de palavrões em formação no convívio com os colegas de escola. E se a televisão insistisse em colocar dentro da sala as cenas lamentáveis que os pais não tiveram condições de evitar? Como responder às perguntas que as crianças fariam, curiosas a mais não poder? O que é STF, papai, e quem são os vagabundos que vivem lá? Por que aquele homem de barba quer prender os vagabundos? Quem é aquele outro, mãe, que falou da hemorroida dele que está sem liberdade? Só gostei quando ele falou dos filhos dele, né? Os coitadinhos podem sofrer, porque uns comunistas querem – quase eu dizia a palavra que ele disse...mas é feio – fazer com os filhos e os amigos deles. Sabe que eu até contei quantas vezes aquele cara do meio disse palavras que eu ouço muito no recreio do colégio? Só aquele cara falou 21 vezes. Mas não foi só ele, não. Ele dizendo ficava mais engraçado, porque parece que era o maioral dali, o que manda nos outros. Eu até vi a cara do que estava sentado do lado, que a gente não sabia se estava envergonhado ou com vontade de chorar. Sim, meninos, agora saiam da sala. Quando começar o programa do Tom e Jerry eu chamo vocês. Mas mamãe, este é que está engraçado. Não é, manos? Tinha um, quase escondido da câmera, que eu achei parecido com o Golias. Dizem que o Golias era muito engraçado, fazia umas caretas que nenhum de nós sabe imitar. Que riam muito dele. É verdade, papai? Não, cara – aqui era o irmão que falava -, tu queres falar do Costinha, que falava como esses caras aí falam. Torcendo a boca, tornando-se mais feio ainda do que era. Mas era muito mais engraçado que feio. Como uns que estão na tela. E a reunião não acabava. As crianças já quase não davam atenção às palavras ditas pelos integrantes daquele (es)calão da Presidência. Pareciam surdos, desde que os gestos de um deles atraíram seu olhar curioso. Talvez fosse o mais jovem, tanta era a surpresa que se adivinhava a cada gesto, a cada mexida na cadeira. Lembrou a cada um dos irmãos a história dos porcos- espinho, antes da solução do problema que esses enfrentaram na hora de dormir. Os gestos e berros à direita do jovem ministro chamavam seus dois olhos esbugalhados, não demoraria muito desviados à esquerda. Dali é que vinham propostas e palavras raramente ouvidas: o também jovem sentado daquele lado, com o outro compondo moldura que se sabia incômoda, oprobriosa, aludia a porteiras, gado passando, gente morrendo... Era difícil também para as crianças entender tudo aquilo. É assim que se governa, papai? Vai estudar, menino; isso aqui não é coisa pra crianças. Saiu o menino, acompanhado dos irmãos, falando pelos cotovelos. O pai só conseguiu ouvir o inicio da conversa antecipada ao estudo a que todos se entregariam. Era o mais velho quem dizia: Puxa, meu irmão, amanhã vou humilhar meus colegas. Quando eu começar a dizer as coisas que ouvimos na televisão, eles vão ver como sei muito mais palavrões que eles. E sentirão inveja, porque sabem que um dia chegarei a ministro. Posso até ser Presidente, olha lá!Já pensou?...

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