José Alcimar de Oliveira*
Escrever é sangrar. Sempre, desde a Bíblia. Se não sangra, é escrever? (João Antônio, 1937-1996).
01. O ato de escrever pode ser comparado ao paciente trabalho do artesão, do tecelão, do escultor. Os conceitos são a matéria de quem escreve. Escrever implica artesania, tecer ideias, esculpir conceitos, domar palavras, conferir organicidade às ideias. A escrita disciplina a fala. Segundo Walter Benjamin, “a fala conquista o pensamento, mas a escrita o domina”. Hoje nas redes sociais sobram falas e se promove a carência de pensamento. Falas se multiplicam ao arrepio do pensamento. Uma das exigências do bom escrever é sempre antecipar o pensamento à fala. Uma fala impensada sempre traz consequências. Trata-se, penso, de um domínio a um só tempo ético e estético. O próprio nascimento da filosofia, se tomamos como referência o mundo grego, está vinculado, dentre outros fatores, ao domínio da escrita. A escrita exige o silêncio do pensamento. Em Provérbios 17,28 encontramos que “até o tolo, quando se cala, é tido por sábio”. Depois de iniciado, o devir da filosofia abre mundos ao pensamento e à escrita. Aos 19 anos, numa carta dirigida ao pai, Marx registrou: “de novo tornou-se bem clara para mim a impossibilidade de penetrar (na ciência) sem a filosofia”.
02. Segundo Bachelard, “a ciência é a estética da inteligência”. Tanto a inteligência filosófica quanto a científica implicam uma disciplina intelectual. Uma disciplina da inteligência. O artesanato, seja filosófico ou científico, pressupõe o filtro da escrita. A escritura é necessariamente precedida pela experiência, pela observação, seja a observação feita de modo casual ou de modo disciplinado. Se para Heidegger a linguagem é a morada do ser, é no silêncio que habita a escritura. A escritura, para pensar com Marx, é o trânsito do método da investigação para o método da exposição. Quem mal observa mal escreve. Os antigos nos ensinam que a sabedoria é filha da audição. Hoje sobra fala e rareia a audição. O excesso de fala tem produzido um mundo de moucos. Ao crescimento do número de surdos cognitivos corresponde a retração de ouvintes sábios.
03. Paulo Freire nos fala de duas leituras que se fecundam: a leitura do mundo e a leitura da palavra. A palavra escrita é uma forma de organizar a leitura do mundo. Respeitar a precedência ontológica da leitura do mundo sobre a leitura da palavra é condição para a boa escritura. Quem não bem observa, mal escreve. Benjamin recomenda nunca deixar passar incógnito um pensamento e manter o “caderno de notas tão rigorosamente quanto a autoridade constituída mantém o registro de estrangeiros”. E ao citar Benjamin, não custa nada considerar sua advertência sobre o ato de citar: “citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção”. Citar é um ato de ousadia e de autoria. Quem cita com autonomia jamais se submete ao citado. Benjaminianamente ousaria dizer que é o citado que deve concordar com o citador.
04. Quem mal lê mal estuda e mal escreve. Segundo Paulo Freire, “o ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo”. A medida do estudo não é o “número de páginas lidas numa noite” nem “a quantidade de livros lidos num semestre”, porque “estudar não é um ato de consumir ideias, mas de criá-las e recriá-las”. A pressa e a compulsão pelo retorno imediato – como se fosse possível resultado sem processo –, conspiram contra o estudo, contra a leitura e contra a escrita. Se a pressa nunca foi boa parceira da reflexão filosófica, menos ainda o será do ato de escrever. Esta compulsão, a um só tempo consumista e retensiva, de caminhar com pressa e em nada se deter, me traz à memória uma irredenta observação do mestre do mundo maldito, João Antônio, ao execrar a atitude classe média da média do escritor brasileiro e “de uma cultura precariamente importada e pior ainda absorvida, aproveitada, adaptada. Como na vida, o escritor brasileiro vai tendo um comportamento típico da classe média – gasta mais do que consome, consome mais do que assimila, assimila menos do que necessita. Finalmente, um comportamento predatório em todos os sentidos”.
05. A gramática, em si mesma, não garante a boa escrita. Um dos meus mestres literários, Autran Dourado, afirma “que a gramática foi feita para servir ao escritor e não o escritor à gramática”. Indispensável mesmo é a leitura de bons autores. E há muitos à espera de leitores. Reproduzo, por considerar bela e refinadamente irônica, esta observação do mestre de Minas Gerais, pouco conhecido e lido, nascido em 1926: “não busque conscientemente ser infeliz, a vida se encarregará disso. Dê uma gargalhada, se for o caso, alivia e escreva, escreva o mais que puder. Mas não escreva com o espírito cansado. Quando sentir que está escrevendo com muita facilidade, pare, é sinal de cansaço. Você verá que as frases estavam ficando frouxas e bambas. Em cinco horas de trabalho produzo em média duas páginas. No final do livro volto a elas: corto, corrijo, acrescento; volto a escrever”. É sempre possível recorrer à “navalha de Ockham”, atribuída ao célebre franciscano medieval: entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (não multiplicar coisas sem necessidade).
06. O ato de ler, sem o qual nunca haverá boa escrita, é também uma forma de escapar às zonas de sombra. As sombras da razão sempre tendem a se antecipar à construção do conhecimento. Ninguém consegue se livrar inteiramente das sombras. É próprio da ignorância arrogante (jamais da douta ignorância ou da ignorância socrática), por naturalizar como habitação as zonas de sombra, trocar a realidade por sua construção objetivamente fraudada. Por isso, é necessário reativar sempre o convite à leitura. Segundo Bachelard, “é imensa a distância entre o livro impresso e o livro lido, entre o livro lido e o livro compreendido, assimilado, sabido! Mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no novo homem, permanecem vestígios do homem velho”. O preconceito sempre se antecipa ao penoso devir do conhecimento. Sem a boa leitura, que conduz à boa escrita, é mais difícil depurar a mente de preconceitos.
07. Por fim, sem com isso concluir, tenho como oportuna a recomendação de João Antônio ao dizer que “o de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra. O que é diferente de publicar livros, e muito”. O desafio maior de quem escreve é o de tentar arrumar o mundo num texto minimamente arrumado. Sim, lutar para não perder o rumo. Perde o rumo quem escreve para se instalar na medida do “apequenamento do tempo” (Benjamin). Desconfiar das coisas feitas, da promessa das soluções prontas e imediatas, que pregam resultado sem a paciência do processo. A aversão ao pensamento e a proscrição da escrita tornam o espírito refém da falsificação da história, da destruição da memória e da negação da realidade. Quando o Estado promove o acesso às armas da leitura e da escrita o povo prescinde da escritura das armas.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA - Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 26 dias de setembro do ano do morticínio de 2021.
Comments