Meu agnosticismo não discrimina nem desvaloriza a crença alheia. Ao contrário, admiro os que a têm e praticam segundo os princípios que proclamam e verbalmente defendem. Irresigno-me e sou tomado de certo sentimento de pena, porém, quando não vejo coerência entre o dito e o feito. Talvez somente uma forma de mostrar admiração e respeito pelos outros – aqueles cujas ações se orientam pelos princípios e crenças proclamados. Dou exemplo com o Círio de Nazaré, que vejo com olhos diferentes dos que algum dia pediram um favor da santa venerada no Pará e se sentem – com justiça – obrigados a mostrar gratidão. Minha admiração pela maior manifestação religiosa sobre a face da Terra, portanto, não é menor que a dos fiéis. (Ainda que nem sempre tal fidelidade seja constatada). Este ano, por motivos óbvios, repeti a ausência, Graça sempre ao meu lado, no almoço tradicional da família, instalada na passagem da Santa. De lá, desde 1964, abaixo de nossa janela passa a multidão, no espetáculo sincrético que o antropólogo Isidoro Alves com grande propriedade e aguda percepção denomina carnaval devoto. Pois bem, não estivemos lá, no domingo 10 de outubro. Testemunhei, desde a primeira vez que a procissão teve seu roteiro (e aqui me refiro não ao percurso, mas ao desenvolvimento e à caminhada do povo) alterado, a frustração e o sentimento de minhas irmãs, Maria Vitória a mais manifestamente afetada pela mudança. Este ano, a irmã mais velha da série dos nove que somos entendeu suficientemente por que a Santa seria conduzida em helicóptero, cortando a cidade de uma ponta a outra. Embaixo, os fiéis e os outros aplaudiam, lançavam suas súplicas e agradecimentos, vibravam como sempre foi. É e será, estou certo, por muito tempo. De longe, pude sentir como foi aquele domingo na casa onde os irmãos nos reunimos, há tantos círios. Antes, com a presença acolhedora e amorosa de nossos pais. Desde o ano 2000, sem o velho cuja felicidade parecia resumir-se na contemplação da imagem milagrosa, passando pela porta de casa, como ele dizia com indisfarçável satisfação. Desde 2011, sentimos a falta de nossa mãe, sem que o pato no tucupi por ela anualmente oferecido aos convivas, parentes ou não, também faltasse. Mudou a forma de conduzir a homenageada pelas ruas da capital do Pará, mas não terá mudado o fervor com que a população e os visitantes expuseram-se aos riscos de infecção, porque mostrar-se fiel a Nossa Senhora de Nazaré é mais importante. A força dela emanada garantiria a saúde de todos. É aqui que ponho minhas reservas. Oxalá seja assim, mas recomendo contarmos os 14 fatídicos dias que se sucedem ao domingo. Não pode ser ignorada a presença de pessoas sem máscaras, aquelas mesmas que, proclamando seu amor à santa e sua inquebrantável fé, desafiam, combatem e obstruem a Ciência, mesmo à custa da vida dos semelhantes. Minha infidelidade à grande padroeira dos paraenses não me impede de ver crime na entrega absoluta da proteção da saúde dos que chamamos irmãos aos desígnios de Nossa Senhora de Nazaré. Ela não merece ser tratada assim.
top of page
Posts recentes
Ver tudobottom of page
Kommentare