José Alcimar de Oliveira*
O que é, na verdade, um Estado senão uma sociedade de direito? (Cicero), em De re publica.
01. Há 38 anos, em 15 de novembro de 1985, Florestan Fernandes (1920-1995), a inteligência mais revolucionária e insubmissa das Ciências Sociais no Brasil, perguntava: Que tipo de República?, num artigo que depois daria título a um livro homônimo. Há mais de dois mil anos, no livro A República, Cícero assinalava: est res publica res publica (a República é coisa do povo). E ainda: quid est enim civitas nisi iuris societas? Em que consiste um Estado senão numa sociedade de direito?
02. Segundo Florestan Fernandes, “os coveiros da Independência e da República, os que tornaram impraticável qualquer forma precária e rudimentar de convívio cívico e democrático dentro da Nação, e através da Nação, retomam a linguagem do egoísmo cego e a ação desenvolta da violência dos que ‘tudo podem’”. No Brasil de 2023, a despeito do desvio do pior no final de 2022, nada há para comemorar quanto ao dia da República.
03. A República brasileira nasceu deformada, porque sem povo, foi proclamada à revelia do povo e, mais grave, contra o povo. O que nominalmente denota o conceito de República? Coisa pública ou coisa privada? O que havia de interesse público garantido na República proclamada? A pergunta de Florestan Fernandes continua necessária para subtrair à farsa da classe dominante sua boa e (in)feliz consciência. A que tipo de República se refere essa classe quando vomita esse conceito?
04. O que é público, comum, coletivo, é o que se destina a todos. Proclamou-se no Brasil uma ofensa simultaneamente ontológica e lógica: res publica presidida pela precedência do privatum sobre o que é res populi (coisa do povo). República apartada do povo, contra o povo e à custa do sacrifício do povo. República apartada do povo trabalhador, contra o povo trabalhador e à custa do sacrifício povo trabalhador, porque é uma ofensa sociológica subtrair ao povo sua condição de classe trabalhadora.
05. Quem, na denominada República brasileira, senão a classe dominante, que vampiriza o sangue da classe trabalhadora, se constituiu, de fato, como sujeito de direitos (na verdade de privilégios ou direitos expropriados)? Como subtrair ao reino do privatum a res publica sequestrada pela República proclamada pelo secular e permanentemente renovado poder oligárquico nacional. Como dar nome próprio às coisas? República Democrática de Direitos, formalizada na Constituição, ou República Monocrática de Privilégios, de existência efetiva?
06. O que há de República numa forma de governo que assegura com zelo e sangue nos dentes os interesses do privatismo, da ganância e do “egoísmo cego” das classes dominantes? O que há de Brasil-nação (para recorrer a Octavio Ianni) numa República controlada pelos interesses do capital sem pátria, que financia e controla a capatazia mercenária que ocupa o poder em todas as esferas do Estado? O que é isso, senão o que o grande Ianni, já referido, chamava de ditadura do grande capital?
07. Manter e promover uma República sem cidadãos é garantia de assegurar e ampliar os privilégios da classe dominante. A eficiente gramática da dominação capitalista, com sua pedagogia da submissão, sabe como universalizar a contraeducação que priva o povo trabalhador da consciência de classe e converte o direito à cidadania em direito do consumidor. Não existe cidadania privada e ignorante de direitos, mormente do sagrado direito ao conhecimento. A luta é tornar pública a República.
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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, em 15 de novembro de 2023, data da República que nunca foi.
Tudo isso não importa para a multidão de evangélicos fanáticos.