Os tempos que vivemos parecem ter acentuado a dificuldade de conciliar sociedade e liberdade. Esse, ao que posso observar, o grande e mais profundo dilema enfrentado. Quanto à liberdade, não basta reconhecê-la como um dos valores associados à queda da Bastilha. Ali ruiu o absolutismo monárquico, e foram dadas as pistas a serem trilhadas pela república e a democracia. O mote tríptico – liberdade, igualdade e fraternidade -, contudo, perde o sentido, ou sequer se sustenta conceitualmente, se alguma das expressões que o compõem é negligenciada. Estivéssemos ainda vivendo em cavernas, reunidos em hordas e submetidos pura e simplesmente aos elementos da natureza, o dilema acima referido não se estabeleceria. A sociedade moderna, em grau crescente de complexidade, impõe soluções distantes da força maior, como em Direito se diz de alguns fenômenos naturais. Aos homens, em seu conjunto, ora mais ora menos amplo, cabe então responder a todos os problemas. Neste caso, a todos, não apenas aos que se restringem a duas alternativas. É preciso, portanto, oferecer substância histórica a qualquer proposta que se acredite capaz de superar o dilema - liberdade/sociedade. Verificamos, preliminarmente tratar-se não mais que de um falso dilema. Pelo simples fato de que a saúde da sociedade está indissoluvelmente vinculada à forma como se entende e exercita a liberdade. Os estados modernos, seja do nosso agrado ou não, foram a forma encontrada pelos contemporâneos para impedir a imitação da cadeia alimentar que preside as relações entre os animais ainda tidos por inferiores. Dado que ao Homem cabe conter-se dentro de circunstâncias ambientais – sejam de ordem natural, sejam de ordem social, da vontade dele e do que a gera e move resultarão essas circunstâncias. Por isso, no sábio dizer de Ortega y Gassett, o Homem é ele e suas circunstâncias. É sob o cerco de fatores naturais e fatores humanos, portanto, que o ser dito superior atua. Dos primeiros, sabe-se terem muitos deles sido equacionados e outros até resolvidos, graças à produção da Ciência e da Tecnologia. Nelas são encontradas respostas à altura de lidar com a complexidade da vida, desde todos os tempos. A ferramenta de pedra lascada de ontem é, talvez, o bisturi eletrônico e de raios laser de hoje. Pois tecnologia sempre existiu, desde que o hominídeo mais primitivo precisou alterar algo material à sua frente. Já a Ciência constitui certo refinamento que cedo se revelou indispensável a encontrar resposta para os desafios que a consciência torna explícitas ao Homem. O dito o Homem sabe que sabe, nem sempre lembrado, resume o conceito prático do que chamamos consciência. Ela é que produz e orienta a percepção para os fenômenos, ao mesmo tempo permitindo a ação humana dentro da liberdade que lhe é outorgada. Da percepção à ação humanas, é dado espaço à vontade, esse atributo que no meu fraco pensar é o mais profundo e distinto traço de separação entre os animais – todos. Biologicamente explicados segundo Darwin, Mendel etc., no plano das relações humanas eles se desvinculam dos demais. Primeiro, por terem facilmente percebida a consciência; depois, por serem dotados de uma qualidade que os outros animais não têm – qual seja a vontade, ausente nos inferiores, disponível e indispensável aos que se autoproclamam superiores. Em ambos, o instinto desempenha funções fundamentais, quase todas voltadas à segurança, manutenção e preservação da espécie. Neste ponto, jacarés, sapos, elefantes, seres humanos são muitíssimo parecidos. A consciência, contudo, oferece ao ser dito humano desejos e impulsões de que os psicanalistas, Freud à frente deles, tratam melhor. E com mais profundidade.
O arranjo social, todavia, abre aos humanos a possibilidade de satisfazerem as necessidades diferentes das que os animais selvagens também têm, se assim for a vontade de cada um. É aqui que o problema começa a complicar-se. Para evitar que o choque de vontades, aspirações, sonhos e utopias comprometa a sociedade humana, até aqui o único instrumento que antecipa alguma probabilidade de êxito se chama Estado. À organização deste, portanto, é indispensável, seja qual for o critério utilizado. Porque, mais que escolha em favor de uma vontade, o Homem é posto diante de problemas que fogem ao seu arbítrio, mais livre ele seja, pois deixou de ser problema individual. Tornou-se coletivo pelo convívio e pela vontade manifesta de continuar vivendo. A liberdade, nesse ponto a que chegamos, implica renúncia a todo e qualquer sentimento ou inspiração individual. Passa a contemplar a vontade coletiva, não importa quantos os indivíduos envolvidos no jogo da vida.
Onde a vontade individual encontra o espaço necessário ao confrontamento com as outras vontades, se não na Política? Isso é matéria a que Aristóteles e Platão deram tanta importância que seria demasiada ousadia repeti-la. Escrevo a palavra com inicial maiúscula propositalmente. Não desejo ver as atividades a ela relacionadas confundirem-se com práticas que amesquinham o pensamento dos dois filósofos gregos e tentam desfazer a humanidade que ainda frequenta corpo e alma de alguns dos nossos contemporâneos. Se são muitos ou se são escassos, não serei eu a dizê-lo. (Amanhã, outro texto dará sequência a este artigo).
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* Textos anteriores (n°s. 1 a 5) foram publicados na aba Comissaria (07 e 14/out; 04 e 18/nov; 09/dez/2021). O de n°7 será postado neste mesmo espaço, em 05/03/2022, amanhã.
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