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Por que celebrar Daniel Coelho de Souza?

Parte IV

Pois bem, decorridos exatos 70 anos da publicação de Interpretação e Democracia, permanece no ponto crítico em que se encontrava, desde então, a velha disputa entre judiciaristas e parlamentaristas, em torno do problema da criação judicial do direito e, mais especificamente, do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Os representantes atuais da primeira corrente, autointitulados neoconstitucionalistas, cerram fileiras na defesa não apenas da plena liberdade dos juízes na escolha dos métodos e princípios da interpretação do direito − postura que Daniel Coelho de Souza defendeu abertamente –, mas também, com o que ele já não concordava, mas também da eleição, por via hermenêutica, de fins jurídico-políticos distintos daqueles claramente traçados pelo legislador democrático, valendo-se, para tanto, da abertura semântica dos princípios constitucionais, que, ao ver dos corifeus dessa escola, hão de se sobrepor às simples regras inseridas no corpo da Constituição. Sintetizando o seu pensamento, esses defensores de um novo direito livre – em verdade, de uma espécie de “jusnaturalismo envergonhado” − emitem as seguintes “palavras de ordem”, como se lhes fosse possível ir além das fronteiras da linguística e, no mundo real, “fazer coisas com palavras”:[1]

a) mais Constituição do que leis;

b) mais juízes do que legisladores;

c) mais princípios do que regras;

d) mais ponderação do que subsunção; e

e) mais concretização do que interpretação.

Tudo somado, o que esses “comandos” pretendem institucionalizar é uma nova separação de poderes − título de resto muito em voga nas discussões políticas atuais −, sob o pretexto de que o juiz democrático, o magistrado do pós-positivismo, já não pode ser apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei”, aquele ente inanimado de que falava Montesquieu, devendo ser, também, um legislador positivo, um produtor de normas, um agente político que fala direto com os princípios da Constituição e compreende melhor do que ninguém o que eles contêm; enfim, portanto, um novo juiz para um novo tempo, alguém que efetivamente esteja em condições de “inventar” o direito adequado a cada situação hermenêutica, ou seja, às circunstâncias de tempo e de lugar em que se encontra o julgador ao proferir sua decisão. Não por acaso, um dos principais líderes desse movimento é o ilustre jurista argentino Raúl Zaffaroni, para quem o juiz asséptico, objetivo, neutro e imparcial nãopassa de uma impossibilidade antropológica, porquenão existe neutralidade ideológica, a não ser sob a forma de apatia, de irracionalidadeou decadência do pensamento, quenão sãovirtudes dignas de ninguém e muito menos de um juiz.[2] E a tal ponto chega essa autocompreensão demiúrgica da função judicante, que alguns magistrados já não se constrangem em se identificarem como “juízes para a democracia” nem, tampouco, participarem de entidades de classe, como a nossa Associação Juízes para a Democracia, o mesmo ocorrendo com a chamada “magistratura de pé”, eis que também os membros do Parquet, reunidos no autodenominado Ministério Público Democrático, posicionam-se como soldados do regime democrático, defensores dos desvalidos e agentes por excelência das transformações sociais. Culminando esse processo de institucionalização de um sindicalismo de toga e beca, criou-se uma entidade mista − a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público − cujas bandeiras de luta vão desde uma etérea defesa da democracia até as mais concretas reivindicações por aumentos salariais, para o que ora pressionam o Governo, ora tentam “persuadir” parlamentares, não importando quais sejam os seus partidos políticos, pois o que vale é o seu voto a favor da majoração dos vencimentos.

Militando contra essa “nova interpretação” do dogma da separação dos poderes, contra essa leitura que privilegia a função judicante – outrora une puissance en quelque façon nulle –, em detrimento do poder congenitamente legítimo do legislador democrático, continuam a lutar aqueles mesmos combatentes, que não se deixam atrair por cantos de sereias e que, à luz da experiência histórica, sabem que os direitos individuais e as liberdades públicas nunca se deram bem sob governos de juízes.[3] É que, desprovidos de mandatos populares, que lhes arejem as ideias, e encapsulados em vestes talares, que os tornam impermeáveis e alienados “do que na vida é porosidade e comunicação”[4], esses Hércules imaginários, que só existem na cabeça de Dworkin, tendem a substituir o querer social pelo seu querer pessoal, e a ética da comunidade, pela sua particular concepção de vida. E a tal ponto chegou essa concepção judiciarista do poder social, que o ilustrado Mauro Cappelletti, ao discorrer sobre o papel das cortes constitucionais no Estado contemporâneo, não se constrange em chancelar a tese de que as cortes constitucionais situam-se “fora e acima” da tripartição dos poderes estatais, do que resulta legitimarem-se, institucionalmente, para positivar a sua própria concepção de justiça - rigorosamente, a sua ideologia -, que outra não é senão aquela da classe social, hegemônica, que seus juízes integram e representam.[5]

Daí a postura “antijudiciarista” até mesmo de um jurista controvertido como Francisco Campos, que, pela sua ideologia e formação política − sabidamente não liberais − poderia enaltecer o governo dos juízes e o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, mas não o fez, pelas razões a seguir.

Atribuir a um tribunal a faculdade de declarar o que é constitucional é, de modo indireto, atribuir-lhe o poder de formular, nos termos que lhe parecerem mais convenientes ou adequados, a própria constituição. Trata-se, no caso, de confiar a um órgão que não se origina do povo, e que não se encontra sujeito à sua opinião, o mais eminente dos poderes, porque, precisamente, o poder que define os grandes poderes de governo e os grandes fins públicos a que se destina o governo. O controle judicial da constitucionalidade das leis é, sem dúvida alguma, um processo destinado a transferir do povo para o poder judiciário o controle do governo, controle tanto mais obscuro quanto insuscetível de inteligibilidade pública, mercê da aparelhagem técnica e dialética que o torna inacessível à compreensão comum”. [6]

E qual foi, então, o posicionamento de Daniel Coelho de Souza, nesse confronto de opiniões? O que externou ele sobre esse tema na sua Interpretação e Democracia, que veio a lume em 1946, dois anos após publicação do livro Direito Constitucional, do jurista do Estado Novo?

Ora, o poder do juiz – anotou, criticamente, Daniel Coelho de Souza −, logo que concebido “fora e acima” da ordem jurídica positiva, converte-se em poder pessoal, regalia de sua condição, faculdade da sua pessoa, estranha ao único fundamento em que, nas democracias, assenta qualquer poder: a lei. Assim sendo, este poder é antidemocrático, porque não pertence ao magistrado como juiz, sim como indivíduo. (aspas nossas).

No regime democrático, o indivíduo há de ter a certeza de segurança objetiva de seus direitos. A sua liberdade e garantias que a cercam não podem ficar à mercê da virtude pessoal do julgador, ainda quando esta se apresente como exercida em nome de conceitos científicos. A sua segurança há que repousar num elemento objetivo, que previamente fulmine com a sanção de ilegitimidade todos os atos que transponham os limites indicados por aquele elemento, ilegalidade contra a qual lhe assiste, democraticamente, o direito de resistência. [7]

Idêntica preocupação têm aqueles juristas mais prudentes, que, nos dias atuais, à vista de sentenças normativas de algumas cortes assumidamente ativistas − como é o caso do Tribunal Constitucional da Itália −, se perguntam, entre perplexos e apreensivos, se já não estaríamos vivenciando uma efetiva transferência do poder político do legislador para o juiz e se, diante da onipotência do Judiciário, o atual Estado constitucional de Direito não seria uma simples máscara ideológica, com a qual se disfarça um verdadeiro Estado judicial de Direito. [8]

Pelo visto, com setenta anos de antecedência, Daniel Coelho de Souza já se advertira do perigo que representaria para a democracia entronizar-se o Judiciário como único e último juiz da sua própria autoridade, porque isso levaria a se admitir que, deixando de “velar na guarda da Constituição”, ele se convertesse em seu amo, senhor e possuidor.

__________________________________________________________________________________ [1] J.L. Austin. Cómo hacer cosas con palavras. Buenos Aires: Paidós, 2006. [2] Eugenio Raúl Zaffaroni. Estructuras judiciales. Buenos Aires: EDIAR, 1994, p. 109. [3] Edouard Lambert. Le gouvernement des juges et la lute contre la législation sociale aux États-Unis. Paris: Marcel Giard, 1921. [4] Confidência do Itabirano, in Carlos Drummond de Andrade. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002, p. 68. [5]Mauro Cappelletti. O controle de constitucionalidade das leis no sistema das funções estatais, in Revista de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, vol.. 3, 1961, p. 38. [6] Francisco Campos. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1942, p.358. [7] Daniel Coelho de Souza. Interpretação e Democracia. Belém-Pará:1946, p. 191 e 192. [8] José Adércio Leite Sampaio. A Constituição reiventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 206/225, e As sentenças intermediárias de constitucionalidade e o mito do legislador negativo, in Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. José Adércio Leite Sampaio & Álvaro Ricardo de Souza Cruz (Coordenadores). Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 159/194; Augusto Martín de la Vega. La sentencia constitucional en Italia. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003; Luis Prieto Sanchís. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 120, e Ideología e interpretación jurídica. Madrid: Tecnos, 1993; P. Andrés Ibáñez. La Justicia en el Estado de derecho y la crisis del Estado Social, in Justicia/Conflicto. Madrid: Tecnos, 1988, p. 120; e Elias Díaz. Curso de Filosofía del Derecho. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 110.

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