José Alcimar de Oliveira
Mas não seria desejável que a formação cultural do homem da ciência se fizesse apenas pelo estudo abstrato dos métodos lógicos sem a correspondente ligação com a práxis do trabalho científico (Álvaro Vieira Pinto)
01. Neste 2021 o Brasil celebra o centenário de nascimento de seu maior educador, Paulo Freire, nascido em 19 de setembro de 1921. A Pedagogia do oprimido, de 1968, seu livro mais conhecido e objeto de estudo nas principais universidades dos cinco continentes, é a terceira obra na área de ciências sociais e humanas mais citada no mundo, segundo a London School of Economics. Exilado do Brasil pela ditadura empresarial-militar em 1964, Paulo Freire só pôde regressar à sua pátria em 1979 por força da Lei da Anistia e sua volta definitiva ocorreu em 1980, convidado a lecionar na PUC-São Paulo. Em maio de 1982 esteve pela primeira vez em Manaus, calorosamente recebido e saudado pela população, sobretudo estudantes e trabalhadores da educação. A Manaus de 2021 ganharia muito se revisitasse, pelo exercício da memória, a Manaus que recebeu Paulo Freire em 1982.
02. Quase 40 anos depois de sua vinda a Manaus e no ano do centenário de seu nascimento, o Patrono da Educação Brasileira está, há pelo menos cinco anos, sobretudo a partir do golpe jurídico e parlamentar de 2016, submetido à mais retrógrada campanha de desqualificação que já se fez a um pensador brasileiro. Exilado em vida antes e em morte agora. Quanto menos o leem mais o detestam. Enquanto seus leitores sentem-se intimidados e muitos nem ousam pronunciar seu nome, os fanáticos andam à solta, nas instituições de ensino e fora delas. Vítima do ódio e da ignorância de gente boçal e reacionária, Paulo Freire é de outro Brasil. O Brasil de Paulo Freire, o nosso Brasil, é o país da educação “como prática de liberdade”, da educação como “um ato de conhecimento, (como) uma aproximação crítica da realidade”. Em Paulo Freire método não é procedimento técnico, é antes teoria do conhecimento. Não criou um método, mas uma teoria dialética (porque dialógica) da educação.
03. O que ocorre neste 2021 é a demonstração da parte de um Brasil que regride rumo às sombras. É triste verificar, sobretudo nas redes sociais, pessoas que nunca leram uma só linha da grandiosa obra de Paulo Freire seguirem esse andor de ignorância e intolerância. Sou um leitor e admirador de seus livros desde 1978, quando iniciei o Curso de Filosofia e Teologia no antigo Cenesch. Triste do país que desonra seus mestres. Triste do país que promove o fanatismo. O fanático se alimenta da vontade de crença e sua cabeça obstinada é permanentemente reativada por um tipo de dissonância epistemológica, estado cognitivo de uma mentalidade oprimida, fidelizada, que consiste em rejeitar de forma quase instintiva aqueles conteúdos cuja consciência foi programada para rejeitar, independentemente da força objetiva da prova. O fanático é sempre possuído pelo objeto de sua crença.
04. Para falar da grande paternidade, Paulo Freire é um filho legítimo do pensamento dialético de Sócrates, Jesus, Hegel, Marx e dos grandes pensadores e educadores do século XX. A sua pedagogia dialógica, cujo conteúdo classista é devedor da tradição da dialética materialista e histórica, se constitui não a partir do sujeito burguês, pertencente ao que Habermas denomina de uma comunidade ideal de fala, mas antes do sujeito histórico submetido como classe à situação estrutural do mutismo, da impossibilidade de falar de si como oprimido e de falar contra a opressão de classe. O sujeito social histórico a quem Paulo Freire dedica sua Pedagogia do oprimido é revelador de sua opção classista: “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”.
05. Dentre os pensadores e educadores do século XX, um pensador pouco lembrado é Álvaro Vieira Pinto, a quem, na sua Pedagogia do oprimido, Paulo Freire chama de “mestre brasileiro”. A este grande mestre (de Darcy Ribeiro, inclusive) Paulo Freire manifesta seu agradecimento por ter consentido que citasse sua portentosa Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica antes da publicação. Faço questão aqui de mencionar que adquiri das mãos do poeta Dori Carvalho o meu exemplar de Ciência e existência no dia 12 de abril de 1983, na Livraria Maíra, em Manaus. Sob alguns aspectos Manaus já foi bem melhor. Tinha até livraria com selo de Maíra. Já disse mais de uma vez que a melhor definição de Paris, que eu nunca conheci, e que há 150 anos foi palco do primeiro Governo Operário e Comunal da História, me veio de Walter Benjamin: um imenso salão de biblioteca atravessado pelo Sena. Quisera que o maior monumento de Manaus fosse uma biblioteca de frente para o rio Negro.
06. Em homenagem a Álvaro Vieira Pinto, reproduzo uma citação de Ciência e existência feita por Paulo Freire em sua Pedagogia do oprimido: “O método é, na verdade, a forma exterior e materializada em atos, que assume a propriedade fundamental da consciência: a sua intencionalidade. O próprio da consciência é estar com o mundo e este procedimento é permanente e irrecusável. Portanto, a consciência é, em sua essência, um ‘caminho para’ algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, a consciência é, pois, método, entendido este no seu sentido de máxima generalidade. Tal é a raiz do método, assim como tal é a essência da consciência, que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica”. Diria que pelo método a leitura da palavra, sempre antecedida pela leitura do mundo, é que o oprimido pode dialetizar o mundo e a palavra.
07. Paulo Freire lidava com pessoas, com nome-carne-e-osso, desde o oprimido como classe. Diferentemente da burguesia, flácida e assassina, que lida apenas com números. A burguesia conta com meios para assepsiar a realidade, tergiversar, manipular os fatos. No dia 16 de março de 2021, o Brasil registrou (oficialmente, diga-se) 2798 mortes por Covid-19. Mas a estatística logo naturaliza a tragédia humana e social produzida pela política da morte. Para a linguagem burocrática dos tecnocratas a manipulação está na ponta da língua: como o Brasil tem cerca de 5600 municípios, a conta ficaria em torno de 0,5 morte / dia por município. Tudo dentro e até abaixo do previsível e aceitável pela necrocracia. A morte em série e os riscos de contaminar-se impedem a justa revolta e indignação dos que veem vidas roubadas e famílias destruídas por trás dos números frios da feliz autocracia burguesa. Mas sem justa revolta e indignação ética, necessárias, não cessará a torrente de genocídio desta pandemia, sobretudo devastadora para a classe que vive do trabalho e produz a riqueza de que é impedida de se apropriar.
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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no dia 21 de março do ano (ainda coronavirano) de 2021.
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