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Parceiros de Caronte

Desculpem-me os que perderam alguma pessoa querida ou ainda as perderão. As primeiras, tanto quanto as outras, com todo o direito de mais que prantear em seu luto a memória dos que se foram. Porque, vitimados pela covid-19, os mortos pelos quais quase nós todos choramos também foram vítimas da hipocrisia. Esta sequer disfarçada pelos que não derramam suas lágrimas, antes comprazem-se em vê-las escorrer no rosto desolado dos que perderam parte de si. Os que desdenharam, por ignorância ou cálculo, a gravidade da pandemia. Os que responderam aos argumentos científicos com zombaria e ofensas, calcados nos sentimentos desumanos que orientam sua conduta. Desses mesmos, destituídos de qualquer valor que os diferencie dos animais ditos inferiores, a negligência – quando não a hostilidade – no trato do mal que a nós todos ameaça. Perdoem-me, portanto, se trago à cena o sentimento abjeto a que se vincula e, orientador, influencia a conduta dos carrascos sem máscara dos nossos dias. A hipocrisia dispensa o uso de outra máscara, pois a máscara de que a natureza dotou esses agentes da morte incumbe-se do que lhe cabe. Há, é certo, os que, pobres de espírito, alma empobrecida, paupérrima humanidade, batem palmas e rendem homenagens aos parceiros de Caronte. Alguns, tripulantes da hedionda barca. A mesma que transporta jovens e negros, mulheres e trabalhadores, corpos às vezes – e quantos! – abatidos pelas armas que nossos tributos pagaram. Muitas das quais, procure-se saber, fabricadas com recursos de igual origem. Armas acionadas pela mão de que se poderia esperar apoio, ajuda, defesa, abrigo – jamais a agressão, a ofensa, a morte, enfim. Foi assim na loja do Carrefour, na capital gaúcha. Mas não só lá, como registra a crônica diária deste país em que vírus e vermes, em impensável convívio, associação e conúbio, destroem sobretudo esperanças. Se todos um dia morreremos, nem por isso a antecipação do fim pode constituir objeto de nossa tolerância, nosso aplauso, muito menos nosso desejo.

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