O serviço dos militares
Prestei serviço militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, CPOR/8, onde ingressei antes de completar 18 anos. Durante os quatro primeiros meses, fui voluntário. Isso me tirava o direito de receber a remuneração correspondente, suficiente para manter os coturnos engraxados, a fivela do cinto cintilando, a roupa muito bem engomada. E a proeza de nunca ter ao menos sido convocado à chamada revista (noturna), pena mais branda de quantas eram aplicadas às infrações regulamentares. Poderia, como muitos de meus contemporâneos e de gerações posteriores, fugir ao serviço. Foi escolha minha, porém, passar dois anos no ambiente da caserna. Lá pude sentir quanto o homem é objeto e produto das circunstâncias, não raro podendo construir o mundo à sua volta. Vi exemplos de grandeza humana, como também testemunhei atos que põem em dúvida a superioridade do animal inteligente. Preferi, sempre, recolher os bons exemplos e propositalmente esquecer o que agredia meu modo de ver o mundo. Chegado o momento de inscrever-me no estágio de instrução, fui dos primeiros a candidatar-se. Após dois meses, voltei de Manaus para Belém, ainda aspirante a oficial, mas já assegurado o direito de ser promovido a segundo-tenente. Não repetirei aqui o já relatado em livros de minha autoria, a respeito da contribuição da vida castrense na minha formação de cidadão. Afirmo, no entanto, suposição que sei alimentada até por cidadãos e cidadãs que nunca passaram do portão das armas de qualquer quartel. Como eu, muitos desses brasileiros e brasileiras devem estranhar aparente indiferença das instituições militares (a que se chama forças armadas), diante das agressões e do achincalhe reiterado do Presidente da República a muitos dos seus integrantes. As humilhações e os vexames impostos pelo ex-capitão a generais que compõem seu quadro de auxiliares fariam sentido se tal tratamento fosse revelador da submissão da instituição militar ao poder civil, como o exige democracia minimamente digna desta qualificação. Não é o caso, a partir da hostilidade do Presidente aos limites constitucionais e legais impostos ao exercício do cargo. Então, haveremos de buscar, segundo o grau de conhecimento acumulado da vida pregressa do ex-oficial, a razão da inadmissível conduta de Jair Bolsonaro. Felizmente, algumas vozes sensatas começam a traduzir e expressar sentimento que vai tomando conta da caserna. Quando, por exemplo, o Ministro da Defesa lembra que as forças armadas têm como partido a nação, e seu compromisso é com ela, não com este ou aquele governo, é justo e legítimo pensar tratar-se de um recado. O general Édson Pujol sabe mais dos seus subordinados que qualquer um de nós pode saber. A ele não escapa, portanto, o mal-estar causado por um ex-colega, cuja exclusão de seu meio certamente não terá sido provocada por atos de bravura ou dedicação à causa que os une. Sabem, o general Pujol e quantos mais militares têm semelhante compreensão do caráter institucional das forças armadas, do inadmissível fosso que Bolsonaro insiste em pôr entre elas e a sociedade brasileira. O resultado desse esforço inglório e lesivo à ordem constitucional arrisca produzir crescente desprestígio da instituição castrense, situação que em nenhuma hipótese justa ou lúcida beneficiará o efetivo humano que a compõe. Tanto quanto ao médico é vedado prejudicar o cliente que não compartilha de suas ideias, crenças, ideologia, aos membros das forças armadas cabe conter-se dentro dos limites institucionais. Nem falo de receberem eles, como paga de sua dedicação ao serviço público militar, parte do que dos contribuintes é exigido. Isso seria reduzir à sagrada lei da compra-e-venda as relações institucionais. Algo tão oprobrioso quanto as humilhações que Bolsonaro não se cansa de protagonizar.