José Alcimar de Oliveira*
O de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra. O que é diferente de publicar livros, e muito (João Antônio).
01. Para quem se deixou mitificar, para aquela figura com a cabeça encouraçada com o que Wilhelm Reich denominava de "peste emocional da humanidade", importa obedecer à ordem de um. O sujeito, sob sujeição consentida ou não, se vê e se identifica com esse um. Para essa figura coletiva (que não foi criada nesse governo), é como se cada eleitor (a) estivesse no poder. Quem se identifica demais sempre perde a identidade. Recuperar a identidade implica insistir na precedência ontológica do real sobre o legal.
02. Uma vez li no grande teólogo José Comblin que a psicologia do escravo é um constitutivo da formação social brasileira. As esquerdas (inclusive das igrejas, de confissão católica ou não), presas ao mundo acadêmico, pouco dialogam com o povo. Quanto à direita, o diálogo é conhecido e pragmático. O escravismo resiste como nossa base cognitiva mais socialmente arraigada. Nosso educador maior, Paulo Freire, insistia na necessidade pedagógica de se compreender a compreensão do outro.
03. Cartório, farda e carimbo são nossos mais festejados (e opressivos) fatores de civilização. A tragédia da política educacional (programada) torna fecunda a identificação cega (Freud) do oprimido para com o opressor. Nunca convertemos em didática com os pés-no-chão a resistência popular protagonizada pelo povo em movimentos como o dos Quilombos, da Cabanagem, de Canudos, dentre outros. É sempre oportuno ao poder manter a consciência popular presa ao presente sem história.
04. A curto prazo sou pessimista quanto à transformação dessa ordem. Sim, temos, desde 1988, uma Constituição formalmente proclamada como cidadã. O povo sabe disso? O processo educacional brasileiro pouco se preocupou em popularizar a formação política do povo quanto aos direitos assegurados pela Constituição, a cada dia rasgada pela autocracia burguesa que vampiriza o País. Em relação ao povo a direita sabe como apartar do real de miséria conquistas asseguradas no plano formal.
05. O processo constituinte não poderia ter como limite a proclamação da Constituição. A esperança, para se organizar coletivamente, requer luta e formação política. O que estamos fazendo quanto a isso? Até quando a ordem autocrática de um estará acima da Constituição e de todas e todos? Como superar essa identificação pervertida, de natureza sociopática, em que um expropria e faz sua a vontade de todas e todos, inclusive de Deus, como a dizer: o Brasil (e Deus) sou eu e está acima de tudo e de todos.
06. É sempre oportuna, e por isso incômoda para o que ocorre ao Brasil (submetido a continuadas agressões ao Estado Democrático de Direito), a pergunta de Cícero: Quid est enim civitas nisi iuris societas? O que é, na verdade, um Estado, senão uma sociedade de direito? Instituição geneticamente burguesa, o direito no Brasil só se move quando está em jogo os interesses da burguesia. Nos casos omissos, tudo se arranja por cima. Nada indica que agora haverá desvio de rota.
07. O que fazer quando o sujeito coletivo da ação permanece alijado do processo? No atual regime da política de desqualificação da política, não haverá saída enquanto o povo não encontrar na política sua força teórica, e a política não encontrar no povo sua força material. Como pôr em marcha a dialética dessa pedagogia popular? Aqui estamos e não chegamos a isso por determinação da natureza, nem por fatores sociais imprevisíveis. Conforme Bertolt Brecht, “não digam nunca: isso é natural”.
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* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical das docentes e dos docentes da Universidade Federal do Amazonas e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, em abril de 2022, o ano da virada.
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